Por Amir Labaki
É
simbólico, e também irônico, que “O Irlandês”, de Martin Scorsese,
tenha sido bancado pela Netflix e seja disponibilizado já nesta quarta
(27) pela plataforma mundial de streaming. Trata-se evidentemente de um
filme crepuscular, sinalizando o fim de várias eras. A da narrativa
cinematográfica para as grandes salas, de um lado; por outro, a da
geração da nova Hollywood, de Coppola, De Palma, Lucas, Scorsese e
Spielberg, que nos anos 1970 insuflou-lhe o último suspiro.
O
ciclo virtuoso aberto com “O Poderoso Chefão” (1972), o primeiro
episódio da saga criminal ítalo-americana dirigido por Francis Ford
Coppola, parece se encerrar agora com “O Irlandês”, a última variação
aos épicos criminosos scorseseanos (Os Bons Companheiros; Cassino), com
um imigrante da Irlanda roubando dos da Itália o protagonismo. Não por
coincidência, tratam-se ambos de adaptações de obras literárias
inspiradas ou simplesmente baseadas por histórias reais, escritas
respectivamente por Mario Puzo (1920-1999) e Charles Brandt.
É
por demais conhecido o enredo da guerra entre mafiosos que atinge a
família Corleone na primeira das três partes do “Chefão”. Sua linha
cronológica parcialmente se sobrepõe a de “O Irlandês”, que acompanha a
ascensão de Frank Sheeran (1920-2003) no sindicalismo americano do
pós-guerra sob o guarda-chuva da Máfia. Seu maior talento é celebrado
pelo título original da narrativa não-ficcional de Brandt, “I Heard You
Paint Houses”, ouvi que você pinta casas, eufemismo para seu ofício de
matador a serviço da “famiglia Bufolino”.
Sheeran
faleceu um ano antes da publicação do livro que, a partir de seu
depoimento, desvendou de vez o mistério do sumiço do maior líder da
história do sindicato dos caminhoneiros dos EUA , Jimmy Hoffa
(1913-1975). Foi sob um duplo apadrinhamento, da Máfia e de seu aliado
Hoffa, que Sheeran se estabeleceu como liderança sindical de menor vulto
após ter servido por quatro anos no Exército americano durante a
Segunda Guerra (1939-1945).
Na
escalação de seu elenco, Scorsese frisa a continuidade na mitologia
fílmica americana entre “Os Bons Companheiros”/”Cassino” e “O Poderoso
Chefão”. Do primeiro díptico, eis Roberto De Niro como Sheeran e Joe
Pesci com seu padrinho mafioso Russell Bufalino. Da trilogia coppoliana,
extrai ninguém menos que Al Pacino, que estende o espectro de seu
Michael Corleone agora para a lenda cinzenta de Hoffa.
Outra
dimensão simbólica de “O Irlandês” ilumina-se se deixarmos um pouco de
lado este paralelo fílmico histórico para examinar um contemporâneo. Sai
“O Poderoso Chefão”, entra (vários degraus abaixo, reconheça-se) “Era
Uma Vez Em Hollywood”, de Quentin Tarantino.
Ambos,
“O Irlandês” e “Era Uma Vez em Hollywood”, partem de histórias reais de
crime. O primeiro, recontando-a; o segundo, subvertendo-a. Em plena era
do empoderamento feminino em Hollywood, ambos giram em torno de enredos
quase monopolisticamente masculinos e as encenam a partir de pares de
atores mitológicos das respectivas gerações de seus cineastas:
DeNiro/Pacino, para Scorsese, Leonardo DiCaprio/Brad Pitt, para
Tarantino.
É
como se dois ciclos hollywoodianos sucessivos celebrassem
simultaneamente suas despedidas. Scorsese dá adeus à moderna Hollywood;
Tarantino, à pós-moderna, da qual foi seu derradeiro epígono.
Neste
momento de transição também da narrativa cinematográfica sob a forma do
filme tradicional projetado em salas públicas para a era da narrativa
audiovisual seriada para ser consumida por streaming no isolamento
doméstico, ambos oferecem-nos obras compassadas, de longa duração (3h29 e 2h41),
a serem deleitadas num fôlego único. É no fato de “O Irlandês” ter sido
viabilizado e vir a ser prioritariamente assistido pela Netflix que
reside a ironia referida na abertura desta coluna.
Mitos
e símbolos à parte, comemore-se “O Irlandês” como a mais sólida,
matizada, envolvente e divertida experiência cinematográfica realizada
por Scorsese em quase um quarto de século. É um dos três ou quatro picos
de sua extensa filmografia, devendo dividir-se parte do crédito ao
roteiro certeiro de Steven Zaillian (A Lista de Schindler; Gangues de
Nova York) e aos desempenhos hipnóticos de De Niro, Pacino e Pesci, à
frente de um elenco no todo excepcional.
Na
recente polêmica do nostálgico Scorsese contra os filmes da Marvel,
parece ter-lhe escapado que o caráter metamórfico do cinema como forma
de expressão lhe é intrínseco desde o nascimento há mais de 120 anos com
os irmãos Lumière. Mas seu tipo de cinema –“cinema como revelação
–estética, emocional, espiritual”- ainda nos encantará enquanto filmes
como “O Irlandês”, ou o coreano “Parasita” de Bong Joon Ho, ou o
espanhol “Dor e Glória” de Pedro Almodóvar, resplandecerem mesmo num ano
opaco como este.