Por Amir Labaki
Com uma robusta e
inquiridora edição, inicia-se na próxima semana a 43a Mostra
Internacional de Cinema de São Paulo. Não poderia vir em melhor hora.
Asfixia-se a produção
nacional? Eis um recorde de representatividade brasileira com nada menos
que 1/5 dos cerca de 300 títulos. Requenta-se estupidamente a retórica
da Guerra Fria? Assista-se na abertura (dia 16) a “Wasp Network”,
adaptado por Olivier Assayas do livro-reportagem “Os Últimos Soldados da
Guerra Fria” de Fernando Moraes.
Abraçam-se as bandeiras da
extrema-direita de Israel exploradas de maneira oportunista pelo
titubeante Bibi Netanyahu? Celebre-se a esperança cada vez mais utópica
da paz no Oriente Médio, dividindo-se as principais homenagens do evento
entre o cineasta palestino Elia Suleiman (O Paraíso Deve Ser Aqui), que
receberá o Prêmio Humanidade, e o diretor israelense Amos Gitai (Kadosh
– Laços Sagrados), distinguido com o Prêmio Leon Cakoff.
Destacam-se desde logo na
seleção as presenças dos vencedores dos festivais de Cannes e de Berlim,
respectivamente “Parasita”, do sul-coreano Bong Joon-ho, e “Sinônimos”,
do israelense Nadav Lapid. Igualmente respaldados pelos aplausos
internacionais, ganham sessões especiais novas obras de dois dos mais
sólidos realizadores revelados no Brasil do século 21: “A Vida
Invísivel”, de Karim Aïnouz, vencedor da mostra Un Certain Regard de
Cannes-2019 e representante oficial do país na disputa do Oscar de
melhor longa internacional, e, programado para a projeção de
encerramento, “Dois Papas”, com Fernando Meirelles dirigindo Anthony
Hopkins e Jonathan Pryce na recriação da passagem de bastão entre o Papa
Bento XVI e o Papa Francisco.
Haverá muito mais a conferir
na vigorosa safra ficcional brasileira mas permitam-me chamar a atenção
para os documentários. Os destaques podem ser divididos em dois grupos.
No primeiro, obras que tomam o tenso pulso do país. No segundo,
mergulhos na rica tradição do cinema brasileiro. Ambos, portanto,
urgentes.
Os ecos sociais e políticos
das manifestações de junho de 2013 estão ao centro de “O Mês Que Não
Terminou”, de Francisco Bosco e Raul Mourão. “Abismo Tropical”, de Paulo
Caldas, e “Outubro”, de Maria Ribeiro e Loiro Cunha, fecham o foco
sobre a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência em 2018. Por sua vez,
Estevão Ciavatta reafirma, com flagrantes devastadores, a urgência de
ações preservacionistas em “Amazônia Sociedade Anônima”.
Cinco títulos investigam a
complexidade, a diversidade e a inventividade da experiência
cinematográfica brasileira -sob chuva ou sol. “Babenco – Alguém Tem De
Ouvir o Coração e Dizer: Parou” valeu a Bárbara Paz o prêmio de melhor
documentário sobre cinema do recente Festival de Veneza. Josafá Veloso
parte de uma entrevista inédita para um ensaio sobre a obra de nosso
maior documentarista em “Banquete Coutinho”. Já Marcelo Santiago celebra
em “Barretão” uma das personalidades essenciais da cultura nacional dos
últimos 60 anos.
Firmino Hollanda e Petrus
Cariry pesquisam a história e o legado da rodagem no Brasil, e mais
especificamente no Ceará, do inacabado “It’s All True” (É Tudo Verdade,
1942) em “A Jangada de Welles”. Por fim, em “Passagens”, a crítica
Lúcia Nagib estreia na direção, ao lado de Samuel Paiva, com um ensaio
sobre nossa produção contemporânea.
Também entre radiografias do
mundo e retratos da arte situam-se quatro dicas entre os documentários
internacionais. “O Homem Que Brincava com Fogo”, de Henrik Georgsson,
inscreve-se em ambas categorias, celebrando a coragem e o pioneirismo
das reportagens investigativas sobre a ascensão dos grupos neonazistas
suecos conduzidas por Stieg Larsson (1954-2004) antes de dedicar-se à
fascinante série policial Millenium, tristemente póstuma. São autênticos
colegas do primeiro Larsson os protagonistas de “Bellingcat – A Verdade
Em Um Mundo Pós-Verdade”, de Hans Pool, um autêntico “thriller doc”
sobre o jornalismo investigativo independente on-line do coletivo que
batiza o filme.
Depois de ter radiografado o
assassinato no chuveiro de “Psicose” em “78/52” (2017), Alexandre O.
Philippe recupera em “Memory –As Origens de Alien” as fontes de
inspiração (de Francis Bacon a John Carpenter) para o clássico de ficção
científica realizado há 40 anos por Ridley Scott. Também valeriam um
filme os bastidores tumultuados que, por quase meio século, retardaram o
lançamento nos cinemas de “Amazing Grace”, com o registro de uma das
apresentações mais emocionantes de Aretha Franklin (1942-2018), numa
igreja de Los Angeles em 1972. Antes tarde do que nunca.