Por Amir Labaki
Em
tempos sombrios, nada mais oportuno do que o retorno a Francesco Rosi
(1922-2015). O cineasta italiano que liderou em seu país a vertente da
produção engajada nos anos 1960 e 70, conhecida como o cinema de
“impegno civile”, volta a primeiro plano a partir do documentário a ele
dedicado por sua filha, Carolina Rosi, e Didi Gnocchi. Lançado fora de
competição no início do mês na 76a Mostra Internacional da Arte
Cinematográfica de Veneza, “Citizen Rosi” (Cidadão Rosi) é a um só tempo
um retrato do diretor de “O Bandido Giuliano” (1962) e um mergulho nos
últimos cem anos de história italiana, como refletidos em seus filmes.
Também
narradora e personagem do filme, Carolina o abre explicando que a
origem da produção remonta a um documentário similar que vinha
desenvolvendo em parceria com o pai. “Não é um filme sobre mim”,
refutava Rosi num dos inúmeros registros domésticos realizados com a
filha. Na essência, Carolina respeitou-lhe a vontade e o espírito do
projeto.
Os
dados biográficos são sinteticamente apresentados. Origem burguesa em
Nápoles, pai caricaturista célebre, estudos jurídicos mas precoce
carreira em rádio, jornal e teatro, assistente de ninguém menos que
Luchino Visconti (1906-1976) em “A Terra Treme” (1948), “Belíssima”
(1951) e “Sedução da Carne” (1954).
“Cidadão
Rosi” coloca então a cronologia de lado e parte para o espelho fílmico
da história italiana. Por nada acrescentarem a esta leitura, 5 de seus
17 longas-metragens são apenas citados, entre os quais sua versão para o
clássico de Gabriel García Márquez “Crônica de Uma Morte Anunciada”
(1987).
A
premiada dúzia de títulos focalizada segue à risca a auto-explicação
resumida por Rosi em entrevista a Francesca Angiolillo da “Folha” quando
de uma retrospectiva em 2001 por aqui: “O que há em comum é o
testemunho da história do meu país: o cinema documenta a realidade da
qual tira sua inspiração”.
Ainda
segundo ele, já no filme, “o começo de tudo”, do ponto de vista
histórico, é “Lucky Luciano” (1973). A trajetória do mafioso que,
imigrante nos EUA, esteve entre os primeiros gângsteres ítalo-americanos
e, depois de pouco mais de uma década atrás das grades, voltou para um
fim de vida opulento em seu país natal, desvela o pacto entre o Exército
americano e a Máfia para uma transição menos conturbada durante a
liberação italiana do fascismo no fim da Segunda Guerra.
Essas
relações entre poder e crime organizado, na ponte EUA-Itália, ganhariam
uma versão contemporânea em “Armadilhas do Poder” (1990). Um idealista
político americano de origem siciliana (Jim Belushi) retorna às origens
familiares e paga o preço de sua pioneira pregação em favor da
legalização das drogas.
O
estreitamento dos laços, na Itália do pós-guerra, entre os políticos e a
Máfia está ao centro da primeira de suas obras-primas, “O Bandido
Giuliano” (Urso de Prata em Berlim 1962). Sobrepõem-se várias versões
para a execução do líder criminoso siciliano Salvatore Giuliano
(1922-1950), responsável pelo “primeiro massacre político da Itália”, no
Dia do Trabalho de 1947 em Portella dela Ginestra. Rosi elevava a novo
patamar de excelência seu método de pesquisas exaustivas, filmagens em
locações reais e mescla de atores profissionais e extras com vivência
local.
Pouco
antes, em sua estreia em “A Provocação” (1958), ele dera início a uma
espécie de tetralogia sobre a promiscuidade entre poder político, poder
econômico e crime organizado. Neste batismo, examinava-se a opressão da
Camorra sobre os pequenos agricultores napolitanos. Em “As Mãos Sobre A
Cidade” (Leão de Ouro em Veneza 1963), mergulha-se nos laços escusos
entre especuladores imobiliários e políticos de Nápoles.
Por
sua vez, “O Caso Mattei” (Palma de Ouro em Cannes 1972) desconstrói a
versão oficial de acidente para o desastre aéreo que vitimou o
empresário Enrico Mattei (1906-1962), com Gian Maria Volonté (1933-1994)
vivendo o ex-resistente antifascista que se fez magnata do petróleo
italiano por meio de todos os instrumentos necessários. Já “Cadáveres
Ilustres” (1976), inspirado em romance de Leonardo Sciascia (1921-1989),
traz Lino Ventura (1919-1987) como um investigador por demais
independente dos assassinatos de três juízes italianos.
Raízes
familiares e eventos históricos temperam uma segunda tetralogia.
Baseado em Carlo Levi (1902-1975), “Cristo Parou em Éboli” (1979)
remonta à repressão fascista do pré-Segunda Guerra para lançar luz na
renitente pobreza do Sul italiano.
A
onda terrorista dos anos 1970 acirra a falta de sintonia familiar no
reencontro de “Três Irmãos” (1981). Já o antimilitarismo pauta tanto “A
Vontade de um General” (1970), sobre a Primeira Guerra (1914-1918) que
levou às trincheiras o pai de Rosi, quanto seu último filme, “A Trégua”
(1997), adaptando as memórias pós-Auschwitz do imenso Primo Levi
(1919-1987).
“Ninguém
soube retratar o poder como Francesco Rosi”, afirmou quando de sua
morte o escritor Roberto Saviano, seu discípulo e atualizador com
“Gomorra” (2006). É mais que hora de outros o seguirem. “Andiamo
avanti”, como repetia sempre o cidadão Rosi.