Por Amir Labaki
Aos 84 anos, aparentando dez a menos, Vladimir Carvalho participa até o próximo domingo (14)
do júri da competição brasileira do É Tudo Verdade 2019 – 24o Festival
Internacional de Documentários. Reprisa assim sua atuação como jurado da
primeira disputa do evento, em sua segunda edição, em 1997. Entre estes
22 anos, honrou-nos lançando longas-metragens em disputas, foi
celebrado com uma retrospectiva por seus 80 anos, em 2015, e participou
de incontáveis debates nas sedes em São Paulo e Rio de Janeiro e durante
itinerâncias no Recife e em Brasília, onde fixou residência há quase
meio século.
A
participação no júri, tendo por colegas a professora de cinema Sheila
Schvarzman e o diretor Cristiano Burlan, criou a oportunidade para
Vladimir lançar em São Paulo o DVD de seu mais recente documentário,
“Cícero Dias, O Compadre de Picasso” (Bretz Filmes, R$ 49,90). Em
parceria com o IMS-SP, a tarde de autógrafos no domingo passado (7) foi
aberta por um bate-papo com o público, que tive o privilégio de mediar.
Durante
quase uma hora, o diretor paraibano de “A Bolandeira” (1968) e
“Conterrâneos Velhos de Guerra” (1991) entreteve a plateia com memórias e
reflexões. Remeteu a um debate familiar de 1948 entre seu pai e um tio,
sobre o escândalo provocado pela primeira exposição de Cícero Dias
(1907-2003) no Recife após uma década de estadia parisiense, marcada por
sua guinada abstracionista, o interesse aceso em torno da obra do
pintor de “Eu Vi o Mundo ... Ele Começava no Recife” (1931).
Mais
de meio século mais tarde, contou Vladimir, uma viagem para participar
em 2005 do festival Paris Cinéma ofertou-lhe a oportunidade, não
planejada, de gravar as duas primeiras fitas mini-DV que catalisariam
seu documentário. Aqueles primeiros registros documentavam a grande
exposição de Cícero então em cartaz na Maison de L’Amérique Latine e o
ateliê ainda preservado do pintor, além de entrevistas com sua viúva,
Raymonde (1918-2013), e sua filha, Sílvia.
Uma
hora antes do debate, conversei com Vladimir exclusivamente para esta
coluna. Comecei perguntando-lhe o que mudara na cena documental no
Brasil no intervalo de duas décadas entre suas participações no júri.
Ele destacou como o festival estabeleceu “uma plataforma” que “deu nova
visualidade aos documentários. “A área da distribuição e da exibição vai
cedendo e vendo nossos filmes com outra ótica”, sustenta.
Estas
duas décadas foram as da superação da tradicional produção
cinematográfica com película cinematográfica pela gravação digital.
Indago a ele, que desenvolveu sua obra durante quase meio século em
filme, qual foi o impacto. “O digital, para nós que fazemos
documentário, foi uma mão na roda”, comemora. “Você filma vendo o
resultado. Você começa até a montar. Você monta filmando”, destaca.
Seu
novo projeto é um documentário de longa-metragem sobre o líder
comunista baiano Giocondo Dias (1913-1987), que liderou o ainda PCB como
seu secretário-geral desde a abertura em 1980 até pouco depois da
redemocratização com o fim do regime militar em 1985. “O título
provisório é ‘Giocondo Dias: Ilustre Clandestino’. Ele viveu mais de
metade da vida se escondendo, usando outros nomes, nomes de guerra, não
tinha paradeiro”.
“Foi
uma educação pela pedra”, explica Vladimir, ele mesmo um ex-membro do
antigo PCB. “Como simples cabo, ele foi baleado, em 1935, atropelando um
soldado que ia atirar no governador”, durante a chamada Intentona
Comunista no Rio Grande do Norte, que teve Giocondo como um dos líderes
militares em Natal.
“Desenvolveu-se
um homem que não acreditava na saída pela luta armada. Foi tido como um
antípoda de Prestes, foi perseguido dentro do próprio partido.
Amicíssimo, irmão de Marighella, era diametralmente divergente dele. Ele
faz esta travessia vendo um horizonte de democracia. É uma trajetória
ideológica de ‘não às armas’”.
Como
realizar um filme sobre um militante condenado à invisibilidade pela
vida na clandestinidade? “Isso se sente no filme”, reconhece o cineasta.
“Apelei para fotografias e testemunhas de companheiros dele. Estou
trabalhando há dois anos. Já editei. Estamos negociando direitos
autorais de arquivos de imagem e música”.
“Vou
fazer este filme em memória de meu pai”, confessa, ao fim do papo. Luiz
Martins de Carvalho, lembrou Vladimir num texto de 2013, foi “um bom
militante do Partido”.
“Ele
era um homem de sete instrumentos. Foi vereador em Itabaiana, na
Paraíba, pós-1947, já pelo PSD. Eu me lembro de meu pai, com um
candeeiro, lendo a primeira edição de ‘O Cavaleiro Da Esperança’ (a
biografia romanceada de Prestes escrita por Jorge Amado). Morreu aos 39
anos, muito cedo. Eu o escuto. Ele está aqui. Meu pai é uma matriz.
Muito pouca coisa me foi acrescentada depois. Foi a influência mais
forte. Absoluta”.