Por Amir Labaki
Neste quase um quarto de século de história do É Tudo Verdade, que abre sua 24a edição na próxima quarta (3),
raros processos de seleção foram tão intensos e complexos. Em longas e
em curtas-metragens, brasileiros ou internacionais, a safra de mais de
1600 títulos inscritos sinaliza um novo patamar na produção audiovisual.
Os
66 títulos selecionados, sendo nada menos que 22 em estreia mundial,
espelham a variedade de dispositivos desenvolvidos por seus
realizadores. Renovam-se os retratos e os herdeiros do Cinema Direto (a
tradicional câmera como mosca-na-parede), aprofundam-se as narrativas em
primeira pessoa, catalisam-se os diálogos com outras linguagens, seja a
fotográfica como a dos jogos digitais. O documentário se move.
Festival
é espelho, logo tanto as obras exibidas quanto o próprio processo de
realização do festival ostentam as marcas de tempos conturbados, no
Brasil como mundo afora. De um lado, o calor da hora estampa-se nas
produções. De outro, a saga do É Tudo Verdade conheceu nestas mais de
duas décadas raríssimas circunstâncias tão inóspitas, o que deve acender
um sinal amarelo na batalha pela viabilização dos eventos audiovisuais
mesmo de proa no calendário 2019.
Um
estímulo excepcional impulsionou-nos. Em junho de 2018, a Academia de
Artes e Ciências Cinematográficas dos EUA honrou-nos com o convite para o
É Tudo Verdade tornar-se um evento classificatório para o Oscar de
longas-metragens, pré-qualificando ambos vencedores das competições
brasileira e internacional, como já o fazia para os vencedores nas
disputas de curtas.
A
inédita iniciativa situa-se dentro da ampla reformulação da Academia
para tornar-se mais inclusiva e internacional, renovando seus processos
de qualificação, indicação e premiação anual, com notáveis resultados
como observados na cerimônia deste ano. Para o festival, o convite a um
só tempo elevou a nova escala o reconhecimento internacional a nossos
esforços e ampliou proporcionalmente a responsabilidade, interna e
externa, de nossas ações. A inclusão entre os 15 semifinalistas para o
último Oscar dos dois últimos longas-metragens internacionais premiados
pelo festival, o polonês “Comunhão” de Anna Zamecka e o dinamarquês “O
Distante Latido de Cães” de Simon Lereng Wilmont, fortaleceu a confiança
quanto aos rumos trilhados.
Incentivos
e dificuldades devidamente processados, a curadoria deste ano almeja
mais uma vez iluminar o presente, entrever o futuro e celebrar o
passado. Ao público e à crítica, aos profissionais e aos júris cabe
agora examinar o conjunto dos selecionados. Especificamente para a
seleção de documentários brasileiros, cumpre saudar que raras vezes o
processo de escolha foi mais difícil, com outras belas e sólidas obras
infelizmente não podendo figurar na restrita lista final.
Além
da diversidade estilística e temática, a nova safra documental
brasileira apresenta notáveis ganhos quanto a valores de produção e
quanto à variedade das fontes de patrocínio. Sinalizem-se os avanços,
mas há que reconhecer como ainda distantes estamos de um quadro estável
de fomento à produção de documentários, e anos-luz de mecanismos
profissionais de apoio à distribuição, publicidade e exibição, num
mercado em radical transição.
Um
robusto passado germina este vigoroso presente. Nada mais natural do
que homenagear, portanto, dois dos maiores cineastas do século 20 que
nos deixaram desde a última edição. Com clássicos como “Rio 40 Graus”
(1955) e “Vidas Secas” (1963), Nelson Pereira dos Santos (1928-2018)
fecundou a moderna produção brasileira e inscreveu seu nome na história
do cinema ao lado de gigantes de fora do eixo Europa-Hollywood como o
indiano Satyajit Ray (1921-1992).
A
produção documental de Nelson expandiu-se apenas no quadrante final de
sua longa carreira, com ênfase na celebração de intérpretes do Brasil
como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Tom Jobim. Em parceria
com o Instituto Moreira Salles (IMS), o É Tudo Verdade a celebra
destacando seus títulos menos conhecidos.
Com
a morte em julho passado do francês Claude Lanzmann (1925-2018),
encerrou-se uma das obras mais originais e contundentes do documentário
contemporâneo. Do mesmo processo de realização que resultou em sua obra
máxima, “Shoah” (1985), Lanzmann desenvolveu uma essencial tetralogia
sobre as mulheres vitimadas pelo Holocausto. Lançado pouco antes de seu
desaparecimento, “As Quatro Irmãs” (2018) tem sua estreia brasileira
durante o festival, em homenagem conjunta com o Consulado da França.
Recuperação
urgente da trajetória de um mestre do jornalismo televisivo dos EUA,
“Mike Wallace Está Aqui” (2019), de Avi Belkin, transcende o retratado,
numa poderosa saudação da importância capital da imprensa. Sua escolha
para a abertura paulistana do É Tudo Verdade 2019 dispensa maiores
explicações.