Por Amir Labaki
Eu ia abrir esta coluna impulsivamente
reduzindo o impacto da obra de Jonas Mekas (1922-2019), morto na semana
passada, caracterizando-o como um dos raros revolucionários da história
do documentário. Não estaria errado, pois foi em torno do cinema
não-ficcional que girou sua produção fílmica, jornalística e ensaística
(poética à parte), mas seria impreciso. Nos quase setenta anos de seu
exílio nos EUA, mais precisamente em Nova York, Mekas expandiu a ideia e
a prática de cinema, por todos os meios necessários.
Ao lado do irmão Adolfas (1925-2011),
que se tornaria parceiro de inúmeras de suas empreitadas e autor de seu
próprio cinema, Jonas Mekas escapou da perseguição nazista em sua rural
Lituânia natal, foi detido e fugiu de um campo alemão de trabalhos
forçados e passou por vários campos para refugiados na Europa do
pós-guerra até fixar-se inicialmente junto à comunidade lituana no
Brooklyn nova-iorquino em 1949. “Uma semana após chegar à América,
pegamos dinheiro emprestado e compramos uma (câmera 16mm) Bolex”,
recordou ele mesmo no texto de abertura de “Lost Lost Lost” (1976), um
de seus principais diários fílmicos em longa-metragem.
Iniciava-se assim uma pulsão
cinematográfica que confundiu-se com sua própria vida, dando origem a
uma filmografia estruturada em mais de sessenta títulos e a um material
bruto autobiográfico, ainda desconhecido, que desafiará os sentidos de
uma nova geração quando vier à luz no futuro próximo.
Quase uma década e uma dúzia de
títulos se passam entre sua estreia com o poético e atmosférico “Guns of
the Trees” (1962) e a consolidação de seu estilo personalíssimo de
filme-diário com as três horas de “Walden (Diários, Notas e Esquetes)”,
de 1969. Deste período, destacam-se seu primeiro longa-metragem, “The
Brig” (1964), registrando uma montagem do Living Theatre de Julian Beck e
Judith Malina, e, no mesmo ano, sua solidária parceria atrás da câmera
para a realização por seu amigo Andy Warhol de “Empire” (1964) -485
minutos de filmagens, no mesmo enquadramento, do Empire Estate Bulding
de Nova York, no que pode ser considerado hoje como um dos pioneiros do
cinema-instalação.
Colaborações com estas atestam a
intensa imersão de Mekas na cena da vanguarda artística americana,
sobretudo a cinematográfica (Brakage, Frank, Sitney), mas muito além
dela (Ginsberg, Leary, The Velvet Underground, John & Yoko). Antes
mesmo de consagrar-se como cineasta, Mekas firmou sua reputação a partir
de sua atividade crítica e institucional em favor do então chamado
“cinema underground americano”.
Ao lado de Adolfas, fundou em 1954 a
revista “Film Culture”, um marco de saída. Entre 1958 e 1971, publicou
no semanário cult “The Village Voice” a coluna “Movie Journal”, dedicada
à produção fílmica na contracorrente de Hollywood. No começo dos anos
1960, ao lado de colegas de trincheira como Shirley Clarke, Ken Jacobs e
Jack Smith, estabeleceu a Film-Makers Cooperative, logo seguida pela
Cinematheque, desaguando em 1969 no essencial Anthology Film Archive, a
um só tempo meca de projeções para cinéfilos e diretores experimentais e
arquivo desta produção. O curador brasileiro Fabiano Canosa, lá
programador entre as décadas de 70 e 90, está a nos dever suas memórias
do período.
Para Mekas, cumpria libertar o cinema
da camisa-de-força industrial do filme narrativo clássico de matriz
griffithiana. Interessava-o a diversidade, o poético, o artesanal. “Na
verdade, o que é o cinema, senão imagens, sonhos e visões?”, defendia em
sua coluna. “O insignificante, o efêmero, o espontâneo são as passagens
que revelam a vida e que possuem todo o entusiasmo e a beleza”.
A partir de “Walden”, esta estética
amadureceu no dispositivo do filme-diário. Seguiram-se, entre outros,
“Reminiscências de uma Viagem à Lituânia” (1972), baseado no material
rodado em seu primeiro retorno a seu país desde 1944, “Lost Lost Lost”
(1976), sobre os percalços da chegada aos EUA, e “Enquanto Sigo Adiante
Ocasionalmente Vejo Breves Lampejos de Beleza” (2000), reunindo
registros de mais de trinta anos de convívio com familiares e amigos.
Com pequenas variantes, a mesma
escrita fílmica: planos do cotidiano, de alguns segundos a poucos
minutos, rodados na mão, com uma estrutura difusa, sinalizada por
cartelas com uma sequência de números e, pontualmente, letreiros
explicativos ou literários, tudo embalado pela narração proustiana em
sua voz delicada em inglês com distinto sotaque –e por comentários
musicais, de canções folclóricas lituanas a muito jazz.
O advento do vídeo e da internet acentuou a
contemporaneidade de sua estética e foi por ele exemplarmente
incorporado em novas obras, como prova em jonasmekas.com o
“365 Day Project” (2007). Mekas gostava de frisar que era um cineasta
para o mundo, mas reconhecido sobretudo como poeta na Lituânia. Nada
melhor nos define do que nossas raízes.