Por Amir Labaki
Michael
Moore está de volta –como pioneiramente previra, agora em Trumpland. Há
exatamente um mês, mais de 1700 salas de cinema nos EUA recebiam a
estréia de “Fahrenheit 9 de Novembro” (Fahrenheit 11/9), sem previsão
ainda de aportar por aqui. Já em seu batismo anuncia-se o propósito
militante, num jogo de títulos com “Fahrenheit 11 de Setembro” (2004),
até hoje o campeão não-ficcional nas bilheterias americanas (US$ 120
milhões).
Há 14 anos o alvo era o
presidente republicano George W. Bush. Agora, claro, é o presidente
igualmente republicano Donald J. Trump. A grande diferença é a
centralidade do ataque.
Ridicularizar
Bush praticamente monopolizava “Fahrenheit 11 de Setembro”. Caçoar de
Trump, aplicando seu discurso a imagens de Hitler e insinuando pulsões
incestuosas em relação à sua filha Ivanka, ocupa talvez não mais que um
terço de “Fahrenheit 9 de Novembro”.
Moore
retoma quase de onde parou no seu filme anterior, “Michael Moore em
Trumpland” (2016), no qual registrava, às vésperas da eleição, seu solo
teatral em busca de votos para Hillary Clinton. As sequências iniciais
do novo documentário concentram-se na surpresa para todos, imprensa,
população e ambos candidatos, do triunfo de Trump.
É
chocante o contraste entre a luxuosa sede da celebração da anunciada
vitória de Hillary e a modesta reunião organizada num hotel pelos
adeptos de Trump, ambos em Nova York. A tese de Moore é que Trump não
contava ganhar pois inicialmente não se candidatara para valer. Seu ego
estaria ferido pela descoberta de estar recebendo da rede americana NBC
menos para apresentar “The Apprentice” do que a cantora Gwen Stefani
para participar de “The Voice”.
Como
testemunho de seu próprio estado de espírito na antevéspera do pleito,
Michael Moore recupera, em tom autoderrisório, um registro em seu
celular, às portas da Trump Tower da Quinta Avenida, de um encontro
casualmente amigável com a então diretora da campanha republicana,
Kellyane Conway. Com pegada similar, o cineasta recorda sua participação
convivial ao lado de Trump num episódio do talk show de Roseanne Barr
em 1998. O futuro presidente retribuiu a cordialidade elogiando no ar o
longa de estreia de Moore, “Roger & Me” (1989).
O
cenário central daquele filme, Flint, Michigan, cidade natal de Moore,
empobrecida pelo encolhimento de seu outrora pulsante parque industrial
automobilístico, ressurge largamente no novo documentário. É outra crise
que agora convida sua câmera: a da contaminação do suprimento de água
da cidade por chumbo, entre 2014 e 2016, devido a uma mudança de fonte
determinada para a construção de um novo aqueduto pelo governador Rick
Snyder.
O foco na emergência de saúde
pública em Flint cumpre dupla função dramática. Por um lado, apresenta o
ex-empresário e agora político Snyder como um precursor de Trump. Por
outro, arma as baterias contra Barack Obama.
Ainda
na Presidência, em maio de 2016, Obama visitou Flint, bebendo
publicamente a água que adoecera a população contra todas as negativas
da administração estadual. O gesto de Obama, sustentam vários depoentes,
teria custado a Hillary a perda de valiosos votos no Estado, afinal
conquistado por Trump.
A derrota na
corrida presidencial pelo Partido Democrático teria sido mais
auto-infligida do que consequência da melhor leitura pela campanha de
Trump do humor do eleitorado americano. Para tanto, na versão de Moore,
dois fatores teriam se somado.
Primeiro,
uma leitura menos radiosa da administração Obama, lenta e tímida na
busca da recuperação econômica após o crash de 2008, repressora de
“whistleblowers” contrários aos excessos da política de segurança
nacional, belicosa por outros meios, isto é, o recurso inflacionado de
ataques com “drones” ao bel prazer da Casa Branca. Moore metralha, em
segundo lugar, a liderança do Partido Democrático por ter manipulado a
convenção nacional em favor de Hillary Clinton, barrando a candidatura
potencialmente mais popular do senador Bernie Sanders.
Nos
seguidores de Sanders, “Fahrenheit 9 de Novembro” encontra a inspiração
para todo seu engajado terço final. Como escreveu Alissa Wilkinson em
sua resenha para o site Vox, “Moore cede o palco para pessoas cujas
vozes não são facilmente ouvidas”. Nelas residem suas esperanças de uma
mais efetiva resistência a tentativas de guinadas autoritárias por
Trump.
São as vozes de novas
lideranças, como a ativista comunitária Alexandria Ocasio-Cortez e a
carismática Emma González, do movimento de estudantes surgido após o
massacre de Parkland na Flórida, no começo deste ano. O cinema de
Michael Moore hoje pulsa com e por elas, muito mais do que contra Donald
J. Trump.