Por Amir Labaki
Jane Fonda talvez seja a última grande atriz
eminentemente cinematográfica. Filha de um dos maiores astros das telas
do auge de Hollywood, Henry Fonda, Jane ultrapassou a marca dos 80 anos
em dezembro passado, para própria surpresa, ainda ativa, em seriados
como “Grace and Frankie” (Netflix) e filmes eventuais como o recente “Do
Jeito Que Elas Querem”, de Bill Holderman, e sempre ativista, contra o
aquecimento global, a favor dos imigrantes nos EUA, em defesa dos
direitos das mulheres acima de tudo.
Há pouco mais de uma década ela expôs
seu brilho e suas sombras numa corajosa e envolvente autobiografia,
“Minha Vida Até Agora” (Record, 642 págs, 2006). Agora é a vez de Susan
Lacy reconstituir em filme sua complexa trajetória, “Jane Fonda em
Cinco Atos”, que passou por festivais como Sundance e Cannes até estrear
na próxima semana na HBO dos EUA, logo também chegando por aqui.
Lacy repete com a atriz a fórmula de seu
recente documentário sobre Steven Spielberg, isto é, mais vida do que
obra. Desenvolveu-a porém por meio de uma estrutura mais sólida,
dividindo-lhe a rota em cinco capítulos, e também pontuando o filme com
notas preciosas sobre momentos capitais da filmografia da atriz.
Parece a princípio equivocado organizar
em torno de figuras masculinas as fases da vida de uma artista famosa
pela liderança feminista dentro e fora do campo cinematográfico, mas o
correr da narrativa revela a coerência da decisão a partir da própria
autoanálise de Fonda. São eles o pai, “um monumento nacional”, frio e
distante, e os três maridos: o cineasta francês Roger Vadim (1928-2000);
o ativista pelos direitos humanos e depois deputado Tom Hayden
(1939-2016); e o empresário de mídia Ted Turner, criador da CNN, que se
torna octogenário em novembro próximo. A quinta e última figura-chave
não é difícil de adivinhar.
Construído a partir do sempre invejável
arquivo audiovisual público e privado dos americanos e de entrevistas
sem rodeios com a protagonista, “Jane Fonda em Cinco Atos” mantém-se
fiel à cronologia, aqui e ali acentuando pontos com certeiros insertes
temporais. O tom autocrítico e reflexivo de Fonda evita felizmente a
tentação hagiográfica.
As marcas da infância infeliz, embora
rica e glamorosa, a acompanham até as últimas cenas do documentário. A
extraordinária carreira monopolizava as atenções do pai, um dos
intérpretes essenciais da Hollywood clássica em filmes como “As Vinhas
da Ira” (1940) de John Ford e “Doze Homens e Uma Sentença” (1957) de
Sidney Lumet. A mãe, Frances Seymour Fonda (1908-1950), bela e frágil,
encontrou paz dos distúrbios maníacos-depressivos apenas com o suicídio
durante uma internação.
Jane tinha mais de 20 anos quando viu
despertar a vocação de atriz. Foi ninguém menos que Lee Strasberg
(1901-1982), o mestres dos mestres de interpretação dramática nos EUA
via Actors Studio, quem a convenceu ter “verdadeiro talento”. A outra
face fundamental de sua personalidade, a de ativista política,
curiosamente começou a nascer, já durante o período francês dos anos
1960 ao lado de Vadim, devido à amizade com a engajada Simone Signoret
(1921-1985), uma imensa atriz (As Diábolicas; Madame Rosa) hoje menos
lembrada do que mereceria.
A militância contra a guerra do Vietnã
reinventou a jovem “sex symbol” como “Hanói Jane”, tendo por grande
divisor de águas a visita da atriz ao front em 1972, quando se deixou
filmar aplaudindo alegremente as palavras de ordem de soldados
norte-vietnamitas que a circundavam sobre um canhão anti-aéreo. A causa
humanitária em questão foi soterrada pela publicidade e, de volta para
casa, sua imagem cindiu-se entre heroína e traidora, para assombrá-la
até o fim dos dias.
Na esfera privada, é tocante ouvir Jane
revelando a batalha desde a adolescência contra a bulimia, explicando
como se tornou uma pioneira musa do “work-out” atrás de dinheiro para
financiar sua militância ao lado de Hayden, e revelando que, de todos os
maridos, o que mais lhe ensinou foi o visionário caipira Turner. Quanto
aos filmes, “A Noite dos Desesperados” (1969), de Sydney Pollack,
confirma-se como o que a amadureceu como atriz, “Amargo Regresso” (1978)
como o que a redefiniu como estrela e produtora dos filmes sobre os
temas que a interessavam e “Num Lago Dourado” (1981), o mais pessoal,
como aquele que a reconciliou com o pai, valendo a ele ainda, pouco
antes de falecer, seu isolado e tardio Oscar.
No sobrevoo de sua extensa carreira por
Lacy, sinto falta especialmente de uma pausa sobre “Júlia” (1977), de
Fred Zinnemann, em que interpreta uma heroica incursão na Alemanha
nazista como a dramaturga Lillian Hellman (1905-1984). Nele Jane
contracena breve e inesquecivelmente com Vanessa Redgrave, cujo rosto
hoje marcado pelos anos (81) reconhece “adorar”.
“Adoro rostos mais velhos”, diz Jane, assumindo logo ter feito plásticas. “Mas sou quem eu sou”. Esta é Jane Fonda.