Por Amir Labaki
É
preciso ir a Paris ou encomendar o recém-lançado DVD (ARTE ÉDITIONS)
para assistir a “Les Quatre Soeurs” (As Quatro Irmãs), o quadríptico
final dirigido pelo documentarista francês Claude Lanzmann (1925-2018),
morto em 5 de julho último. Totalizando pouco mais de 4 horas e meia de
duração, suas quatro partes concentram-se cada uma numa sobrevivente
judia do genocídio nazista originalmente entrevistada para o clássico
“Shoah” (1985).
São
elas, por ordem de aparição nos filmes, Ruth Elias, Ada Lichtman, Paula
Biren e Hanna Marton. Em “Shoah”, Lanzmann editou apenas breves trechos
das entrevistas de Ruth e Paula. Vendo-as todas agora, compreende-se
como explodiriam mesmo, na dramaticidade própria a cada uma, o foco
narrativo de “Shoah” sobre a anatomia do processo de extermínio em massa
dos judeus europeus pelos nazistas.
Não
é mera retórica quando Lanzmann, em sua nota para o material de
divulgação, escreve que “cada uma delas trata de um capítulo pouco
conhecido do Holocausto, cada qual de um ponto de vista único”. O
desafio, reconhece, era encontrar “a forma certa”.
A
divisão em quatro retratos, chamado por ele de “formato políptico”, foi
a engenhosa resposta. De um lado, preservam-se a autonomia e a
organicidade de cada depoimento. De outro, apresentados como um
conjunto, frisam-se traços comuns: nas palavras de Lanzmann, “a aguda,
quase física inteligência e um irreprimível instinto de sobrevivência
que não pôde ser extinguido apesar da morte aparentemente certa à
espera”.
Ruth,
Ada, Paula e Hanna partilham ainda, em maior ou menor intensidade, o
sentimento de culpa por terem sobrevivido, enquanto seis milhões de
judeus pereceram –incluindo, nos quatro casos, todas suas famílias. A
discussão ética em torno das particularidades das distintas
circunstâncias de suas salvações transcende o alvo de “Shoah” e aproxima
“As Quatro Irmãs” de outro documentário desenvolvido por Lanzmann a
partir de seu material bruto não aproveitado: “O Último dos Injustos”
(2013).
O
quarteto se abre com seu mais longo e dilacerante episódio (89
minutos), “O Juramento de Hipócrates”. Ruth Elias o inicia e encerra
cantando e tocando acordeão. Originária do interior da então
Tchecoslováquia, aos 19 anos foi enviada com a família para o campo de
concentração de Theresienstadt. Ao lá casar-se e engravidar, sua descida
ao inferno, com raras duas paradas em Auschwitz, a coloca cruelmente na
rota de Josef Mengele (1911-1979).
No
segundo e mais breve filme (52 minutos), o título “A Pulga Alegre”
refere-se ao apelido dado pelos oficiais nazistas a seu casarão no campo
de Sobibor. Limpá-lo era uma das tarefas da polonesa Ada Lichtman, além
de, numa macabra reciclagem, fazer novas roupas de bonecas para filhas
de alemães poderem herdá-las de crianças judias executadas. Ela e o
futuro marido são dos poucos sobreviventes do massacre após o levante no
campo radiografado por Lanzmann em “Sobibor, 14 Outubro 1943, 16 horas”
(2001).
Com
pouco mais de uma hora, o terceiro filme chama-se “Baluty” a partir do
nome do bairro miserável em que foi estabelecido o gueto judeu de Lodz, o
mais longevo de todos. Colocada sob as asas do polêmico presidente do
conselho dos anciões, Chaim Rumkowski (1877-1944), a polonesa Paula
Biren serviu na força policial feminina do gueto. Uma decisão errada e
ei-la enviada com os pais para Auschwitz.
“A
Arca de Noé”, por fim, radiografa o Holocausto húngaro e o controverso
caso Kasztner que sacudiu Israel no final dos anos 1950. A advogada
Hanna Marton de Cluj/Kolozvár, na oscilante Transilvânia entre Romênia e
Hungria, recorda como sobreviveu devido a sua inclusão, com o marido
Félix, entre os 1684 passageiros de um comboio especial que teria sido
negociado por Rudolf Kasztner (1906-1957) diretamente com Adolf Eichmann
(1906-1962).
O
casal Marton escapou dessa forma do acelerado extermínio que vitimou
450 mil judeus húngaros entre maio e julho de 1944. Kasztner porém não
viveu para ver-se inocentado em 1958 pela Suprema Corte israelense,
sendo assassinado no ano anterior por um radical de extrema direita em
Tel Aviv.
Fiel
ao seu dispositivo essencial da entrevista, Lanzmann matiza cada
retrato com breves variantes. Insere assim a música, no primeiro; o
depoimento do marido de Ada, no segundo; fotos de época de Baluty, no
terceiro; fotos atuais de Cluj, no último.
“As
Quatro Irmãs” encerra sua obra não como um complemento ao monumental
“Shoah”, mas sim como uma continuação de imensa vitalidade por veredas
inexploradas. A dor ao assisti-la só é sobrepujada pelo luto de a saber
estação final.