Por Amir Labaki
Foi
como uma tempestade perfeita, daquelas que raras vezes enfrentamos ou
testemunhamos, mas que se repetia em pouco mais de uma década. Depois de
dedicar-me madrugada adentro à coluna da semana passada, despertei cedo
na manhã da segunda, dia 22 de maio último, com a notícia da morte do
jornalista e escritor Alberto Dines (1932-2018), encerrando o mesmo dia
com o impacto do anúncio, no começo da noite, do falecimento em Nova
York do romancista Philip Roth (1933-2018). Ao golpe desta última,
lembrei de imediato daquele fatídico 30 de julho de 2007, quando em
questões de horas tivemos de nos despedir de Ingmar Bergman (1918-2007) e
Michelangelo Antonioni (1912-2007).
Por
mais diversos sejam seus potentes legados, Dines e Roth guardavam
notáveis pontos de contato, a começar da origem judaica no
entre-guerras. Tornaram-se ambos profissionais da palavra, professando
sempre um judaísmo laico e humanista, que lhes marcou tanto as produções
escritas quanto seus posicionamentos democráticos e progressistas.
A
identidade judaica marcou o conjunto da obra literária de Roth,
simbolizado sobretudo pelo escândalo entre os conservadores de sua jovem
novela cômica “O Complexo de Portnoy” (1969), assim como os três mais
impressionantes livros de Dines, “Morte No Paraíso –A Tragédia de Stefan
Zweig” (1981), “O Baú de Abravanel: Uma Crônica de Sete séculos até
Silvio Santos” (1990) e “Vínculos do Fogo – Antônio José da Silva, o
Judeu e Outras Histórias da Inquisição em Portugal e no Brasil: Tomo 1”
(1992).
Lembro
como a publicação de “Morte no Paraíso”, uma biografia literária de
rara elegância e notável fôlego de pesquisa, a um só tempo iluminou a
mítica mas opaca figura de Zweig e também o talento menos conhecido de
um dos mais inovadores e influentes homens de jornal do Brasil da
segunda metade do século 20. Já haveria todo um curso de jornalismo
apenas em duas das primeiras páginas do Jornal do Brasil dos tempos de
Dines como editor-chefe: a da edição sobre o AI-5 e a sem manchete
dedicada à derrubada em 1973 de Allende no Chile.
Eu
começara a lê-lo pouco antes do consagrador livro sobre Zweig, ainda em
seu período como diretor da sucursal da “Folha” no Rio. Foi naquela
época, entre 1975 e 1980, que Dines criou a coluna “Jornal dos Jornais”,
embrião da revolução crítica no exame da produção jornalística entre
nós representada pela criação em 1998 do Observatório da Imprensa. Tive o
privilégio de conhecê-lo só então, entre sessões do É Tudo Verdade, que
costumava frequentar com sua companheira e minha ex-colega de “Folha”,
Norma Couri.
“Comecei
também como crítico de cinema”, confessou-me Dines num desses
encontros, lembrando a estreia em 1952 na revista “A Cena Muda”. Uma de
suas amizades mais antigas, também recordou ele, foi o documentarista
David Perlov (1930-2003), estabelecido em Israel desde 1958 e autor de
uma obra originalíssima, como comprovam seus “Diários” aqui lançados em
DVD pela Videofilmes. Dines depõe sobre esta amizade e sobre a infância e
adolescência na comunidade judaica do Rio e de São Paulo dos anos 1930 e
1940 no belo retrato de Perlov rodado em 2014 por Ruth Walk.
O
melhor documentário sobre Philip Roth ainda me parece “Sem Máscaras”,
dirigido em 2013 pelo francês William Karel e aqui exibido na celebração
dos 80 anos do escritor pelo É Tudo Verdade. Muito menos sorte teve
Roth nas versões cinematográficas de seus livros. A exceção me parece
“Fatal” (2008), rodada pela espanhola Isabel Coixet com Ben Kingsley e
Penélope Cruz a partir de “O Animal Agonizante”. Algo da atmosfera
rothiana, irônica e culta, cética e dionisíaca, está lá.
Philip
Roth é o Balzac da grande comédia humana nos EUA desde 1930. Nenhuma
obra de ficção que li neste século 21 repetiu o impacto existencial de
“Homem Comum” (2006) e devo estar sozinho em situar no topo de sua
produção a menos estimada tetralogia final, batizada por ele como
“Nêmesis” e formada por “Homem Comum”, “Indignação” (2008), “A
Humilhação” (2009) e “Nêmesis” (2010). Se ainda vivo, Edward Said
(1935-2003) deveria dedicar a ela mais um capítulo de seu “O Estilo
Tardio” (2009).
As
artes de Dines e Roth em seus respectivos ramos dialogam exemplarmente
se tomarmos trechos em que definem o “ar de um tempo”, o primeiro sobre o
golpe de 1964 em “Debaixo dos Deuses” em “Os Idos de Março e A Queda em
Abril” (1964), o segundo quanto ao vale-tudo hipócrita contra Bill
Clinton em “A Marca Humana” (2000). Começa Dines: “Sexta-feita, 13 de
março. Os grandes dias começam com distensão. Retesam-se depois”. “Nos
Estados Unidos, foi o verão em que a náusea voltou”, inicia o parágrafo
de Roth.
Procurem, leiam, releiam, espalhem. Há uma triste beleza em que eles partilhem, agora e para sempre, também suas datas de adeus.