Por Amir Labaki
A
história é de todos conhecida: em 28 de dezembro de 1895, no salão indiano no
subsolo do Grand Café do Boulevard des Capucines, em Paris, nascia o espetáculo
cinematográfico, com a primeira projeção pública para espectadores pagantes,
com filmes dos irmãos Antoine e Louis Lumière. O foco de Thierry Frémaux em
“Lumière! A Aventura Começa”, que estreia na próxima quinta, 14, é
outro: estabelecer a importância estética, e não apenas técnica, dos Lumière.
“Lumière!”
compõe-se de 108 filmes rodados por Louis Lumière e pelos operadores de sua
empresa. Foram selecionados (e restaurados) entre os 1422 títulos filmados na
França e mundo afora entre 1895 e 1905, todos no mesmo formato: duração média
de 50 segundos, imagem quadrada com bordas arredondadas.
Diretor
geral do Festival de Cannes, Frémaux aplica ao filme toda sua experiência em
mais de duas décadas de envolvimento profissional com o Instituto Lumière, em
Lyon, do qual também é diretor. Seu documentário de arquivo dá sequência a seu
trabalho em torno dos Lumière que resultou em 2015, no 120o aniversário da
primeira sessão, na lúdica exposição “Lumière! Le Cinèma Inventé” (Lumière! O
Cinema Inventado) no Grand Palais de Paris, comentada nesta mesma coluna.
Além
de dirigir e co-editar, Frémaux também comenta com sua própria voz a sequência
da mais de uma centena de curtas, auxiliado dramaticamente por uma trilha
musical esculpida a partir de trechos de Camille Saint-Saëns (1835-1921), “um
compositor da época dos Lumière”, frisou ele na apresentação do filme em São
Paulo no último dia 30. “A Aventura Começa” resulta um ensaio sobre cinema de
ritmo envolvente e imagens cativantes, pleno de inteligência e humor.
Há
ecos de Chris Marker na forma com que Frémaux como que nos lava os olhos e
reensina a enxergar imagens cinematográficas muitas vezes já conhecidas. Desconstruindo
cada breve filme, refuta o clichê dos Lumière como registradores do real,
demonstrando-lhes o talento visual e narrativo de autênticos cineastas.
“Lumière!
A Aventura Começa” rompe com a tradicional classificação do cinema dos Lumière
como documentário e o de Méliès como o de pioneira ficção. Como persuasivamente
argumentou Frémaux após a projeção, Lumière e seus operadores pertencem, isso
sim, ao time de diretores como Rossellini e Kiarostami, cineastas cujas obras
transitaram sempre entre o real e o ficcional.
Dividido
em dez partes, o documentário resume algumas das principais veredas da produção
Lumière, sem aferrar-se a um esqueleto cronológico. Sua tese é apresentada logo
de saída, exibindo as três versões da obviamente encenada saída da fábrica de
Lyon em 1895, considerado o mítico “primeiro filme”.
Aos
poucos, no decorrer dos capítulos, Frémaux destaca exemplos do pioneirismo dos
Lumière tanto no desenvolvimento da gramática fílmica quanto na pluralização
dos gêneros. Em “No Começo”, eis “O Regador Regado” (1895) inaugurando o cinema
de “gags” e “A Chegada do Trem em La Ciotat” (1897), o filme de medo, enquanto
“Demolição de um Muro” (1897) apresenta a primeira trucagem.
“Primeiros
Passos de Um Bebê” (data desconhecida), no episódio dedicado a “Infâncias”,
surge como o inaugural filme de suspense. A imobilidade das primeiras câmeras é
driblada por sua instalação em meios de transporte, exercitando os primeiros
“travellings” a partir de um navio que registra o grande canal de Veneza em
1896 ou de carona no elevador da Torre Eiffel, no ano seguinte.
A
narração constantemente aponta o recurso à encenação, como ao escalar um
personagem espectador em cena para acentuar (em geral, excessivamente) o roteiro
cômico, e a cuidadosa busca da melhor posição para a câmera em busca do único
enquadramento ideal, como defendido décadas mais tarde por Raoul Walsh
(1887-1980). Talvez o melhor exemplo se encontre em “Quai de L’Archevêché”
(1896), no capítulo dedicado a Lyon, em que a câmera estática dá conta de três
elementos durante uma inundação: a água nas ruas, a dificuldade do trânsito das
carruagens e a multidão a tudo assistir.
Convidado
a Lyon como tantos mestres por Frémaux, Martin Scorsese foi certeiro ao
destacar um dos filmes, rodado em 1900 pelo operador Gabriel Veyre (1871-1936)
na então Indochina francesa. Em “La Village de Namo” (A Vila de Namo), a câmera
num riquixá se afasta da cidade sendo seguida por várias crianças, com uma
menina ganhando a corrida e monopolizando o quadro.
Entre
aquele registro de um duplo maravilhamento, da menina pela câmera e vice-versa,
e outra filmagem icônica, esta televisiva, da Guerra do Vietnã, com a garota
vietnamita Kim Phuc correndo na estrada após ser vítima em 1972 de um dos
ataques com napalm, encapsula-se o século 20, comentou Scorsese. No primeiro, a
utopia progressista e humanitária dos Lumière; no segundo, o horror do século
mais violento da história. Voltar aos Lumière também nos recorda como o trem da
humanidade descarrilhou.