Por Amir Labaki
Um ano depois de ter
finalmente recebido um Oscar honorário, um dos grandes mestres do
documentário americano, Frederick Wiseman, aos 87 anos, já se posiciona
robustamente na disputa do próximo Oscar de melhor longa documental com
seu novo filme, “Ex Libris – New York Public Library”. Vencedor do
prêmio da crítica na recente Mostra Internacional da Arte
Cinematográfica de Veneza e já em cartaz em Nova York, é seu 43o filme,
em exato meio século de carreiraa.
Em regularidade produtiva e coerência
estilística, Wiseman é o Woody Allen da não-ficção. Seus documentários
focalizam em geral uma mesma instituição, na maior parte das vezes nos
EUA. Não há entrevistas, narração em “off”, cartelas explicativas ou
material de arquivo.
Quando visitou o Brasil pela primeira
vez, em 2001, para uma pioneira retrospectiva na quinta edição do É Tudo
Verdade, Wiseman resumiu em dois encontros públicos seu método de
trabalho. “A filmagem é a pesquisa”, disse. A gravação dura em geral
três meses, com as primeiras semanas sendo dedicadas a um processo de
reconhecimento mútuo, sem câmera, na instituição retratada. Durante a
filmagem, ele se responsibiliza pela captação do som, mergulhando
pessoalmente em seguida em longos processos de edição de cerca de um
ano.
Dedicado à Biblioteca Pública de Nova
York, “Ex Libris” dura, como a maior parte de sua produção, mais de
três horas (3h17, para ser preciso). É o décimo longa-metragem que roda
na cidade, na qual sequer habita, preferindo o cotidiano mais pacato de
Cambridge, no vizinho Estado do Massachusetts.
Tudo gravita em torno da imponente sede
em mid-Manhattan, na Quinta Avenida com a 41 Street, mas Wiseman
radiografa o sistema bibliotecário disperso pela cidade, com outros 90
endereços, uma dúzia dos quais visitada por sua câmera, de Chinatown ao
Harlem. “Nunca me movimentei tanto para qualquer outro filme”, confessou
o cineasta ao último número da “Vanity Fair”.
A dilatada duração não se faz sentir
dada a extraordinária fluidez com que se articula o mosaico de
registros. Filmagens de diferentes reuniões administrativas, sobretudo
na sede, ancoram regularmente a sucessão de crônicas do cotidiano do
público e dos profissionais que frequentam e tocam cada unidade.
Wiseman flagra a instituição em pleno
momento de sua reinvenção para a era digital. Como explica numa palestra
uma especialista holandesa, a biblioteca superou o modelo de depósito
de livros para tornar-se um pólo de acesso de conhecimento para o
público. Seguidas reuniões da direção frisam a ativa interface mantida
pela instituição com variados serviços sociais da cidade, notadamente
ligados à educação, seja de estudantes quanto de desempregados em busca
de novas formações profissionais.
Nestes encontros, espocam ainda desafios
específicos, como o da inclusão digital de um terço da população
nova-iorquina sem acesso à internet, ou o crescimento da demanda de
versões em e-book de “best-sellers”, em ritmo muito maior do que o dos
pedidos das versões em papel, ou como tratar a frequência de “homeless”,
em busca de abrigo e não de reais serviços. Aprendemos ainda que a NYPL
é mantida por uma parceria público-privada, com cerca de 60% cobertos
pelo orçamento da cidade. A participação de dinheiro público, cumpre
frisar, aumentou nos últimos anos.
Cada espectador certamente elege seus
episódios favoritos, entre os registros de anônimos e as gravações de
encontros públicos com artistas célebres como Elvis Costello, Patti
Smith e Ta-Nehisi Coates. Em meu caso, firmaram-se na memória uma
reunião numa unidade periférica para orientar como se portar numa
entrevista de emprego, uma palestra sobre a militância antiescravagista
do islamismo africano, o processo de gravação para pessoas visualmente
deficientes de uma leitura de “Riso no Escuro” de Vladimir Nabokov
(1899-1977) e o encontro de um clube de leitura em torno de “O Amor nos
Tempos do Cólera”, de Gabriel García Márquez (1927-2014).
“Ex-Libris” acaba por resultar a maior
radiografia social da população menos favorecida de Nova York da
filmografia de Wiseman. A partir de um dos símbolos máximos da opulência
e majestade de Manhattan, revela-se uma população economicamente
vulnerável, em sua maioria de imigrantes e afro-americanos, em busca não
de glamour mas sim de uma melhor formação que gere maiores
oportunidades. Quem procurar Woody Allen, vai encontrar Martin Scorsese e
Spike Lee.