A obra de Nelson Pereira dos Santos finalmente
ganha tratamento nobre em DVD como o lançamento da primeira das quatro
caixas da coleção editada pela Bretz Filmes (R$ 159,90). Cobrindo o
período entre 1956 e 1967, reúne versões restauradas no fim da década
passada, com patrocínio da Petrobras, de cinco de seus seis primeiros
longas-metragens, faltando infelizmente apenas sua essencial estreia com
“Rio, 40 Graus” (1955).
Esta
primeira leva apresenta “Rio, Zona Norte” (1956), “Mandacaru Vermelho”
(1960), “Boca de Ouro” (1963), “Vidas Secas” (1964) e “El Justicero”
(1967). As seguintes cobrirão respectivamente os períodos entre 1968 a
1973, o mais marcado pela experimentação e pelo desbunde como “Azyllo
Muito Louco”(1970); 1977 a 1993, de retomada das grandes adaptações
literárias como “Memórias do Cárcere” (1984); e 2000 a 2012, focado
principalmente em documentários como “A Música Segundo Tom Jobim”
(2012).
A
possibilidade de uma nova revisão da filmografia de Nelson Pereira dos
Santos, que aos 88 anos prepara um filme sobre D. Pedro II, coincide com
mais uma homenagem: a atribuição a ele da Medalha Paulo Emílio Sales
Gomes pela 50a edição do Festival de Brasília, que começa no próximo dia
15. Nada mais merecido pois Nelson já estava na linha de frente do
cinema brasileiro em 1965 quando o evento nasceu, sendo à época um dos
principais professores do curso de cinema da UnB.
Antes
de se unir a Paulo Emílio e Jean-Claude Bernardet, entre outros, na
fase inicial da escola brasiliense, Nelson já havia realizado cinco
longas-metragens numa década, tornando-se um dos pioneiros da
modernização estética do cinema brasileiro, inicialmente sob forte
influência do neo-realismo italiano. A violenta intervenção na UnB pelo
regime militar instaurado em 1964 o levou a renunciar ao posto
acadêmico, rodando no Rio, com vários de seus ex-alunos, sua primeira
comédia de costumes, “El Justicero”, que encerra a primeira caixa.
A
ausência de “Rio, 40 Graus”, com sua pioneira crônica social da cindida
vida carioca, desfalca significativamente o balanço da contribuição
inaugural do cineasta. Atenua um pouco esta falta o fato de seu filme
seguinte, “Rio Zona Norte”, desenvolver-se na mesma vereda, a partir do
retrato de um sambista inspirado em Zé Keti (1921-1999) e interpretado
por Grande Otelo (1915-1993).
Na
preciosa coleção de extras de cada DVD, temos de saída uma entrevista
com o próprio diretor. Nelson explica as origens de “Rio Zona Norte”,
destaca a disciplina impecável de Grande Otelo durante os 42 dias da
filmagem, contrariando a fama de “difícil”, e articula diretamente seu
segundo mergulho carioca à realização em seguida pela mesma equipe, em
São Paulo, de “O Grande Momento” (1956), de Roberto Santos (1928-1987),
do qual foi produtor.
Uma
surpreendente temporada de chuvas no sertão nordestino o impediu na
sequência de rodar, em 1959, seu projeto do coração: uma adaptação de
“Vidas Secas”, de Graciliano Ramos. Com a equipe já a postos, “inventei
uma estória”, conta o próprio Nelson sobre a origem de “Mandacaru
Vermelho” (1960). A escassez de elenco o fez interpretar o principal
papel masculino no triângulo amoroso de seu improvisado "nordestern”.
“Boca
de Ouro” (1963), seu filme seguinte, foi a primeira versão
cinematográfica de uma peça de Nélson Rodrigues (1912-1980). Revista
hoje, estabelece-se entre as duas ou três melhores. Apadrinhada pelo
protagonista Jece Valadão (1930-2006), então no auge com o sucesso em
“Os Cafajestes” (1962) de Ruy Guerra, essa reunião entre artistas de
posições polares no espectro político causa menos surpresa ao vermos nos
extras o diretor afirmar: “Um dos momentos mais marcantes de minha
formação foi quando fui assistir em São Paulo, no Teatro Municipal, a
peça dele, ‘Vestido de Noiva’, pelo Comediantes”.
“Vidas
Secas” (1964), finalmente viabilizado logo depois, nada envelheceu,
mais de meio século depois de sua estreia. É ainda a tradução fílmica
mais dura, direta e emocionante da tragédia dos retirantes nordestinos.
Adaptado
por sua vez do picaresco romance de estreia do dramaturgo João
Bethencourt (1924-2006), “El Justicero” acompanha as aventuras de um
garotão abonado da Zona Sul carioca, vivido pelo estreante Arduíno
Colasanti (1936-2014). Apesar da qualidade dos diálogos, a narrativa
humorística algo metalinguística jamais embala.
Pelas
cutucadas políticas na ditadura, “El Justicero” teve cópias e negativos
apreendidos, salvando-se apenas devido à existência de uma cópia 16mm
na Itália. É curioso assisti-lo sobretudo como documento múltiplo de uma
triste época.