Por Amir Labaki
Com uma possível exceção,
seu longa de estreia “Janela da Alma” (2001), co-dirigido com João
Jardim, todos os filmes dirigidos por Walter Carvalho, de ficção ou
documentários, apresentam artistas ao centro. Eis, de um lado, “Cazuza –
O Tempo Não Para” (2004), co-dirigido com Sandra Werneck, e o retrato
de um escritor em “Budapeste” (2009), adaptado do romance de Chico
Buarque. E, de outro, “Moacir Arte Bruta” (2005), “Raul – O Início, O
Fim e O Meio” (2012), “Brincante” (2014) e “Manter A Linha da
Cordilheira Sem O Desmaio da Planície” (2016), que estreia na próxima
segunda às 22h no É Tudo Verdade no Canal Brasil.
“Um
Filme de Cinema”, que chegou às salas na semana passada depois de ter
participado da competição brasileira do É Tudo Verdade 2015, forma um
díptico com “Janela da Alma”, enquanto suas demais obras documentais
combinam-se num quarteto de retratos de artistas. “Janela da Alma” é um
reflexão sobre o ato de ver, tendo por ponto de partida a metáfora de
Leonardo da Vinci emprestada para o título. Sua estrutura polifônica
articula reflexões e depoimentos sobre a visão de artistas, cientistas e
pessoas comuns.
Por
sua vez, “Um Filme de Cinema” é uma reflexão sobre esta arte e sobre o
ato de fazer filmes. Não cita no título, mas insere logo de saída em sua
própria argamassa, outro filósofo, Platão, e sua alegoria da caverna.
As
bruxuluantes primeiras cenas num velho cinema destruído em Bouqueirão,
no sertão da Paraíba, remetem às sombras projetadas pela fogueira mítica
nas paredes das cavernas e assistidas pelos primeiros homens. Assim
como Platão fez Sócrates referir-se ao filósofo como aquele que escapou
da caverna e descobriu que o projetado não é o real mas sim suas
sombras, Carvalho convida seus colegas de ofício a contar como produzem
as sombras projetadas por eles (isto é, os filmes que dirigiram) -e o
que, especificamente, tornou cada um deles cineasta.
Em
“Janela da Alma”, um elo evidente vinculava os entrevistados. Era o de
uma relação especial de cada um deles com os olhos – a deficiência
visual, a criação para o olhar, ou a criação a partir de uma reflexão
sobre a visão. O elo é mais sutil em “Um Filme de Cinema”.
Há
um, óbvio –todos os depoentes são cineastas, com exceções pontuais. Mas
e dai? Inexiste um traço estilístico ou temático comum entre eles, Ruy
Guerra e Hector Babenco, José Padilha e Karim Aïnouz, Bela Tárr e
Lucrécia Martel, Gus van Sant e Ken Loach, Jia Zhang-ke e Júlio
Bressane.
O
que os une é o fato de serem cineastas “outsiders”, com trajetórias
autorais únicas de filmografias desenvolvidas ao largo da grande
indústria. São todos diretores que pavimentaram seus próprios caminhos.
Walter
Carvalho os filma mimeticamente, como se estivessem no interior de seus
próprios universos audiovisuais. Muitas vezes o estão mesmo, pois foram
entrevistados no intervalo de filmagens de obras deles para as quais
Carvalho colaborou como diretor de fotografia (Aïnouz, Babenco,
Bressane, Guerra). Nos demais casos, como por exemplo os de Loach, Tarr
e Van Sant, a mimese se faz por esmerada reconstrução.
Os
temas puxam uns aos outros: Por que você faz cinema? O que define um
plano? Qual o papel do som, do plano longo, do ritmo, da câmera? É você
que faz o filme ou o filme que faz você? É possível mudar o mundo com o
cinema?
O
filme os articula, por meio de uma montagem associativa não-didática,
numa estrutura algo musical, com temas regularmente retomados e
retrabalhados. Depoimentos e trechos de filmes dialogam e se iluminam
mutuamente.
Alguns
dos filmes citados foram rodados pelos depoentes, mas nem são a
maioria. Como os cineastas, os trechos não têm identificação – importa
seu valor argumentativo, não, ou menos, sua origem.
Flashes
de uma obra em particular começam a pontuar a narrativa, como uma
estrofe que se repete num poema de Dylan Thomas: cenas com o garoto Totó
(Salvatore Cascio) de “Cinema Paradiso”, de Giuseppe Tornatore. As
inserções do melodrama clássico sobre o despertar cinematográfico de um
“ragazzo” de província preparam a sequência de conclusão.
Cumpre
não a revelar mas vale assinalar como ela atribui novo significado ao
prévio depoimento de exceção de um não-cineasta, o dramaturgo Ariano
Suassuna (1927-2014). Suas lembranças das matinês infantis dão voz a
seus conterrâneos e contemporâneos das salas de cinema do interior da
Paraíba, não por coincidências as mesmas frequentadas uma geração depois
pelo jovem Walter.
“Rage, rage against the dying of the light”. Parece Ken Loach mas é Dylan Thomas. Poderia ser Walter Carvalho.