Por Amir Labaki
Neste fim de semana, a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, e o Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, dedicam maratonas às últimas apresentações da retrospectiva internacional do É Tudo Verdade 2017, “100: De Volta à URSS”. Na mesma sala paulistana é possível conferir ainda nesta sexta, dia 28, as três sessões da retrospectiva nacional que celebra a obra de Sergio Muniz. O evento se encerra neste domingo, com a premiação ocorrendo na noite de sábado em São Paulo. Na próxima semana, ocorrem as itinerâncias em Porto Alegre (3 a 7 de maio) e Brasília (4 a 7).
Em visita ao festival, no Rio e em São Paulo, para apresentar em competição seu mais recente filme, “Relações Próximas”, o documentarista Vitaly Mansky, ucraniano de nascimento mas de formação russa, chancelou as escolhas da curadoria do ciclo soviético, assinada por Luis Felipe Labaki e por mim. Mansky sacou de pronto uma das intenções da seleção de doze títulos, produzidos entre 1926 (“Avante, Soviete!”, de Dziga Vertov) e 1989 (“Elegia Soviética”, de Aleksándr Sokúrov). “Os filmes escolhidos espelham muito bem os períodos de suas produções”, afirmou no início de sua intervenção.
Reunindo cópias obtidas principalmente junto a arquivos russos e ao Museu de Cinema da Áustria, em Viena, de obras menos conhecidas pelo público brasileiro, a mostra buscou destacar momentos essenciais da variada produção soviética que cobrissem o arco histórico da experiência bolchevique. Há assim títulos da euforia pós-revolucionária ainda na era do cinema silencioso (“Avante, Soviete!”, “Moscou”, de Mikhail Kaufman e Iliá Kopálin, “O Grande Caminho”, de Esfir Chub), produções de distintas abordagens estéticas do período stalinista (“Sal Para a Svanécia”, de Mikhail Kalatôzov, “Um Dia do Novo Mundo”, de Roman Karmén e Mikhail Slútski, “A Batalha Por Nossa Ucrânia Soviética”, de Aleksándr Dovjenko e Iúlia Sôlntseva), filmes do breve interregno (1953-1964) mais liberal do chamado Degelo kruscheviano (“Diante do Julgamento da História”, de Fridrikh Ermler, “Olhe Para o Rosto”, de Pável Kogan) e obras crepusculares de mirada crítica já na glasnost de Gorbatchev (“Mais Luz!’, de Marina Babak, “O Poder de Solovki”, de Marina Goldovskaya, “Elegia Soviética”).
Para além do eixo histórico, a seleção é permeada transversalmente pelo contraste de projetos estéticos no interior do campo do documentário. A ênfase no aspecto de “documento” na produção não-ficcional comum a “Moscou” e “O Grande Caminho” polemizava com a defesa do documentário como um cinema “não-atuado” mesmo de um Vertov de início como “Avante, Soviete!” (“O Homem com a Câmera de Filmar”, sua obra-prima, não tardaria, em 1929).
Por sua vez, “Um Dia Do Novo Mundo” exercitava o modelo staliniano de documentário sobre coletividades enquanto o curta “Olhe Para o Rosto” afirmava a ruptura com a linha anterior apostando no retrato de indivíduos. Com mais de um quarto de século os separando, tanto “Sal Para a Svanécia” (1930) quanto “Diante do Julgamento da História” (lançado em 1966 e logo recolhido) combinavam, cada qual de sua maneira, elementos ficcionais e não-ficcionais.
Dentre os comentários de Vitaly Mansky, três me pareceram especialmente reveladores. Primeiro, a reafirmação por ele de Vertov como o maior artista de todos, no topo de seu panteão. Mansky testemunhou ainda como o média-metragem de Sokúrov, um réquiem das lideranças soviéticas, foi recebido com estranheza, ou mesmo desconforto, quando de seu lançamento, mesmo ao receber o grande prêmio do tradicional festival alemão de curtas-metragens de Oberhausen.
Em terceiro lugar, Mansky classificou o curta-metragem “O Início” (1967), do armênio Artavazd Pelechian, como o documentário mais importante do ciclo. Realizado ainda durante seu curso de cinema na tradicional VGIK de Moscou, “O Início” é um ensaio de arquivo que faz um balanço das abordagens cinematográficas do regime soviético no cinquentenário da revolução bolchevique de outubro de 1917.
“Como a maioria dos documentários da mostra”, disse Mansky, “ele também olha para trás mas o faz de maneira a sintetizar um movimento que se repete na história russa: pessoas correndo de um passado sem saber onde vão chegar”. Foi sua forma de sustentar a absoluta atualidade do cinquentenário curta de Pelechian, revelador mesmo da Rússia de Putin.