Por Amir Labaki
O próprio cinema está no coração de dois dos programas especiais do É Tudo Verdade 2017, que acontece em São Paulo e no Rio até o próximo dia 30. “78/52”, de Alexandre O. Philippe, e “Dawson City: Tempo Congelado”, de Bill Morrison, não poderiam, contudo, ser mais diferentes.
Philippe é um patologista da cultura de massas. Seus filmes anteriores, muitos exibidos no festival, examinam as estranhas do culto à série “Guerra nas Estrelas”, o fascínio de Hollywood por zumbis e o fenômeno do polvo que adivinhava resultados na Copa de 2010.
Por sua vez, Morrison é um arqueólogo de filmes abandonados. “Decasia”, seu longa-metragem de estreia, é uma sinfonia audiovisual sobre a degeneração do antigo cinema que tinha por base fotoquímica o nitrato, altamente frágil e inflamável. Realizado em 2002, já em 2013 ingressou como a obra mais próxima à sua produção tombada pela coleção da Biblioteca do Congresso dos EUA.
“78/52”, é bom explicar logo, refere-se às 78 posições de câmera e aos 52 cortes no processo de montagem da revolucionária cena de assassinato no chuveiro de “Psicose” (1960), de Alfred Hitchcock. Philippe dedica cerca de um terço de seu filme para a anatomia da realização daqueles três chocantes minutos, que ainda hoje assombram seus espectadores como ofizeram em sua estreia há mais de meio século.
Baseado em material de arquivo, entrevistas com críticos, técnicos, diretores e atores e reencenações, “78/52” desconstrói a feitura daquela sequência mítica. Entre muitas revelações, detalha a obsessiva pesquisa dos efeitos sonoros e a minuciosa coreografia a que Hitch submeteu a dublê desnuda de Janet Leigh, Marli Renfro, cujo depoimento é dos achados do filme.
Mas Philippe vai além. Primeiro, destaca a ousada ruptura representada por aquele suspense neogótico em preto e branco na sequência dourada da filmografia hitchcockiana imediatamente anterior. Sempre é bom lembrar que nada menos que “Um Corpo Que Cai” e “Intriga Internacional” precederam “Psicose”. Aos cinéfilos curiosos por ainda maiores detalhes, recomendo a leitura de “Alfred Hitchcock e Os Bastidores de ‘Psicose’ (Intrínseca, 2013), de Stephen Rebello, que serviu de base para o melodramático “Hitchcock” (2012) dirigido por Sacha Gervasi com Anthony Hopkins no papel-título.
“78/52” sustenta, segundo, o impacto de “Psicose” sobre todo o posterior cinema de terror. Philippe dialoga aqui com “The Moment of ‘Psycho’” (Basic Books, 2009), de David Thompson, particularmente no que Thompson escreve sobre “a extensa influência exercida em outros filmes, especialmente no tratamento de sexo e violência, e o espaço que abriu para o tratamento irônico (ou zombeteiro) de ambos”.
Bill Morrison revisita a história do cinema com uma envergadura social ainda mais ampla. Dando continuidade à sua intensa produção utilizando “found footage”, “Dawson City” tem por ponto de partida uma coleção de mais de 500 títulos de filmes mudos, muitos dos quais considerados perdidos, descobertos em 1978 no fundo de uma antiga piscina naquela cidade canadense próxima ao Alaska.
São cinejornais, esquetes cômicos, dramas breves, pioneiros longas mudos. Realizados nas duas primeiras décadas do século 20, chegavam tardiamente em cópias 35mm em nitrato ao distante vilarejo, no fim de um longo circuito de exibição pela América do Norte. Contas feitas, era mais barato estocá-las ou mesmo destruí-las do que as devolver às sedes nos EUA dos distribuidores originais. Apenas décadas mais tarde desenvolveu-se a consciência quanto à importância de preservá-las, com a estruturação das primeiras cinematecas.
1895 é o nascimento oficial do cinema. 1896 é o ano do início da corrida do ouro que por um breve período transformou Dawson City num dinâmico centro regional urbano. Morrison narra o desenvolvimento de ambos processos por meio da montagem e ressignificação de cenas da filmoteca congelada, amparado por letreiros, entrevistas pontuais e uma extraordinária trilha de Alex Somers.
“Dawson City” alça voo combinando de forma hipnótica a história do cinema e da cidade-título para se tornar um épico lírico sobre o próprio século 20. Enquanto Philippe nos lembra quantas vezes Hitchcock reinventou o cinema, Morrison demonstra como parece inesgotável o poder do cinema reinventar a experiência humana.