O centenário da primeira das duas revoluções russas de 1917 passou simbolicamente em brancas nuvens na quarta-feira passada, dia 8. Como a definiu o historiador Orlando Figes, foi “anti-monárquica e democrática”, levando à abdicação o czar Nicolau II (1868-1918) e pondo fim a três séculos de reinado da dinastia Románov (1613-1917). Será curioso acompanhar em novembro como será, mundo afora e especialmente na Rússia de Putin, a efeméride referente à revolução bolchevique.
Na história do documentário russo e soviético, dois títulos muito distintos destacam-se na escassa filmografia centrada na Revolução de Fevereiro (segundo o calendário juliano então vigente na Rússia). O primeiro veio à luz nas celebrações dos dez anos da derrubada do czar: “A Queda da Dinastia Románov” (1927), de Esfir Shub (1899-1959). Apenas em 1965, pouco após a queda de Nikita Khrushov (1894-1971), teve fugaz estreia o segundo: “Encarando o Julgamento da História” (1965), de Fridrikh Ermler (1898-1967).
Cada qual espelha de modo peculiar a conjuntura política da era de sua produção. “Románov” é um pioneiro documentário de arquivo plenamente engajado no modelo autocelebratório do período stalinista. "Julgamento”, por sua vez, apresenta sob a forma do cinema de entrevista uma reflexão histórica característica do degelo khrushoviano (1953-1964).
Bolchevique de primeira hora, Shub operou um milagre cinematográfico para compor seu primeiro longa-metragem. Formada na remontagem para o mercado local de seriados americanos e filmes estrangeiros, ela garimpou pessoalmente cinejornais e registros amadores para organizar sua crônica documental da Rússia entre 1912 e a primeira revolução de 1917.
Há um só tempo forjou todo um novo gênero, o do cinema de arquivo, e produziu a primeira narrativa não-ficcional em filme do processo de erosão que encerrou a experiência monárquica russa. Para tanto, ironia da história, contou com os preciosos “home movies” do próprio czar deposto.
“A Queda da Dinastia Románov” (disponível no YouTube) divide sua hora e meia de projeção em quatro grandes capítulos: um retrato do regime agonizante, os preparativos para a Primeira Guerra Mundial, o próprio conflito com devastador impacto na Rússia e o levante que derrubou Nicolau 2o e deu origem ao governo parlamentar encerrado pelo putsch bolchevique de novembro. Sem cobrir o período entre março e novembro, o filme apresenta como imagem final Lênin (1870-1924) cumprimentado alegremente pessoas na rua.
Shub estruturou uma narrativa fluída e cronológica por meio de uma montagem associativa e bipolarizada. De um lado, a modorra exploratória de um regime monárquico distanciado da população e ancorado nos capitalistas (do campo e da indústria), na Igreja (Ortodoxa), num parlamento oligárquico (a Duma) e, claro, no poder militar. Do outro, a oposição dinâmica, liderada naturalmente pelos bolcheviques, em contato com os explorados nos latifúndios, fábricas e nos baixos escalões das forças armadas.
“Encarando o Julgamento da História” revisita o mesmo período, estendendo-se até depois da Segunda Guerra (1939-45), a partir do depoimento de uma testemunha ocular: o deputado da Duma czarista Vassili Chulguin (1878-1976). Curiosamente, ele é um dos poucos parlamentares a aparecer logo no começo do filme de Shub. Não por acaso, claro: em 1927, Chulgin vivia no exílio, depois de ter participado da guerra civil (1917-1921) ao lado do exército branco antibolchevique.
Preso em 1944 quando as tropas soviéticas invadiram a Iugoslávia. Chulgin foi condenado a 25 anos de prisão por atividade antissoviéticas, sendo anistiado em 1956 dentro do processo de desestalinização de Khrushov. Com apenas um documentário prévio na longa filmografia, Ermler o levou pela primeira vez desde a revolução para a então Leningrado (antiga Petrogrado e hoje novamente São Petersburgo) para, em cenários históricos escolhidos a dedo, ser entrevistado por um historiador anônimo.
As memórias do veterano político, reconciliado com o regime soviético mas muito menos autocrítico do que Ermler poderia prever, atingem seu ponto mais fascinante ao reconstituir a visita decisiva que fez como representante da Duma, ao lado do colega Alexander Gutchkov (1862-1936), ao czar Nicolau II na cabine do trem em que tentava retornar ao palácio em Petrogrado. A mensagem que portavam, pró-abdicação mas não antimonárquica, representou a pá de cal nas esperanças de o czar manter-se no poder, decisão firmada em documento durante aquele mesmo encontro noturno.
“A Queda da Dinastia Románov” alcançou grande sucesso de público ao ser lançado em março de 1927, alicerçando uma longa e produtiva carreira para Shub. Tirado de cartaz e engavetado pela nova linha-dura de Brejnev (1906-1982), “Encarando o Julgamento da História” foi o último filme de Ermler.