Por Amir Labaki
O beco-sem-saída do conflito entre israelenses e palestinos voltou as manchetes na semana passada. Na primeira vez, quando, ao recepcionar na Casa Branca o primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu, o presidente americano Donald Trump rompeu a tradicional linha política de apoio pelos EUA a uma solução do impasse com o estabelecimento de dois Estados autônomos e independentes, lado a lado. Na segunda, um júri presidido pela diretora americana Laura Poitras ("Cidadãoquatroä) concedeu no último sábado, dia 18, o prêmio de melhor documentário do festival de Berlim a “Istiyad Ashbah” (Caçando Fantasma), do cineasta palestino Raed Andoni.
A vitória de Andoni carrega a especial distinção de tratar-se da edição inaugural da nova premiação para obras não-ficcionais no festival alemão, batizada (com o nome do patrocinador) Prêmio Glashütte Original de melhor documentário. Em “Caçando Fantasma”, acompanhamos como ele reconstrói como cenário em Ramallah o centro de interrogatórios de Moskobiya em Israel, para reencenar violações de direitos humanos contra palestinos presos pelo aparato repressivo israelense.
Andoni busca por meio da representação a um só tempo denunciar a tortura policial e atenuar-lhe catarticamente o trauma. Ensaia e encena para a câmera histórias de brutalidades sofridas e registradas por palestinos ou vividas por alguns dos próprios “atores”, arregimentados por um anúncio em jornal. Ele próprio alterna-se nos papéis de diretor e de vítima, tendo passado por Moskobiya aos 18 anos.
Para aproximá-lo do espectador brasileiro, vale notar como o dispositivo utilizado por Andoni dialoga com o recurso à psicoterapia do trauma por Rodrigo Siqueira na discussão sobre a tortura durante a ditadura militar (1964-1985) no recente “Orestes” (2015). A reencenação dos mecanismos de tortura, por sua vez, remete à dramatização das memórias de exilados brasileiros no Chile em “Brazil – Report on Torture” (1971), de Haskell Wexler (1922-2015) e Saul Landau (1936-2013).
“Caçando Fantasma” é uma coprodução entre França, Palestina, Suiça e Qatar. A premiação berlinense acentua o engajamento europeu em favor da demanda palestina por um Estado próprio, na mesma semana em que os EUA sinalizavam uma guinada radical em direção contrária.
Trump foi mais uma vez Trump ao jogar para o alto mais de três décadas de política exterior americana no Oriente Médio, assumindo uma postura ambígua de “o que vocês decidirem está bom”. Netanyahu não conteve a gargalhada ao ouvir a declaração durante a entrevista coletiva. Veio de graça a benção do novo padrinho americano para sua agressiva estratégia de inviabilização de facto de um Estado palestino.
Mais e mais parece consolidar-se um quadro explosivo pois radicalizado no Oriente Médio. Nesta semana, lembrei do extremo pessimismo do documentarista israelense Avi Mograbi (Agosto) quando o visitei em Tel Aviv no começo da década. Foi ele o primeiro intelectual pacifista judeu a demonstrar-me pessoalmente ceticismo quanto a uma solução a médio prazo (cinquenta anos, me disse Avi) e quanto à viabilidade da solução de dois Estados, dada sobretudo a guinada à direita em Israel.
Desde 2009 em seu segundo mandato como primeiro-ministro israelense, Netanyahu apenas confirmou o comentário feito sobre ele em seu primeiro mandato (1996-1999) por seu antecessor, o trabalhista Shimon Peres (1923-2016).”A única preocupação de Netanyahu é com sua própria coalizão”, disse Peres em 1998 a David Remnick de “The New Yorker”. “Ele vive com medo de perder o poder –esta é sempre sua prioridade. Enquanto isso, perdemos a confiança que conquistamos, perdemos o mundo árabe, perdemos o respeito conquistado no resto do mundo”.
Quase duas décadas depois, com a segunda Intifada (2000-2005), a guerra de Gaza (2008-09) e milhares de assentamentos ilegais de colonos israelenses em terras palestinas, o quadro de desconfiança desenhado por Peres apenas piorou. “Caçando Fantasma”, o documentário de Andoni, capta agora exatamente esse estado de espírito. Trump brinca com fósforos num paiol de pólvora.