Por Amir Labaki
Esnobado pelo Oscar mas indicado ao homólogo britânico BAFTA, “The Beatles: Eight Days a Week - The Touring Years”, de Ron Howard, finalmente desembarca nas telas brasileiras. Beatlemaníaco infantil no calor da hora, Howard compensa a escassa experiência como documentarista com o talento de contador de histórias (Apollo 13; Uma Mente Brilhante). A saga dos Beatles ressurge assim recontada com foco, centrado nos três anos e meio (1963-1966) em que rodaram o mundo em shows que estabeleceram as bases contemporâneas das turnês musicais.
Entre as apresentações improvisadas em Liverpool e Manchester (Grã-Bretanha) e em Hamburgo (Alemanha) ao concerto final em São Francisco (EUA), os Beatles se tornaram a maior banda da Terra. Elevaram ainda a novo patamar a histeria de massa de um público predominantemente juvenil, desafiando a precariedade da segurança policial e penando com a dos esquemas de produção para apresentações ao vivo.
Neste período, eles dominaram as paradas mundiais com sete álbuns e 14 “singles” (cerca de 120 canções em 42 meses), quase 350 shows e dois filmes, “Beatles – Os Reis do Iê-Iê-Iê” (A Hard Day’s Night, 1964) e “Help!” (1966), ambos dirigidos pelo americano Richard Lester. Um dos pontos altos de “Eight Days a Week” é explicar esta impressionante produtividade, captando a intensa disciplina da rotina extraordinariamente criativa do conjunto, injetada pelos produtores Brian Epstein (1934-1967) e George Martin (1926-2016).
O filme de Howard gira em torno da tensão entre a maratona da banda na estrada e o “refúgio” (na definição de Paul McCartney) das gravações em estúdio. Correndo o planeta, dos EUA às Filipinas, do Líbano à Austrália, os Beatles instituíram o novo padrão de shows em estádios, sem a devida tecnologia para apresentarem suas músicas. Nos retiros para possibilitar a oferta de um “single” de duas canções a cada três meses e de um álbum a cada meio ano, o quarteto começava cedo, às 10 da manhã, com uma hora e meia para ensaiar e registrar cada título que logo aprendemos a assobiar.
O generoso material de arquivo permite a Ron Howard apresentar a jornada planetária dos Beatles, mas os episódios mais desenvolvidos devotam-se aos sucessivos e diversos impactos de suas excursões pelos EUA. O ponto de partida foi a visita relâmpago de dez dias em fevereiro de 1964, para um show para 8 mil fãs em Washington preparado dias antes pela estreia na TV americana no programa semanal de domingo à noite de Ed Sullivan. Ao retornarem seis meses depois, para apresentações em 25 cidades num mês, já tinham feito história emplacando pela única vez, antes ou depois, nada menos que os quatro primeiros postos na parada de sucessos da Billboard.
Marcou esta turnê uma das duas grandes radiografias de shows feitas por Howard. Inserindo a febre beatlemaníaca na conjuntura social americana da época, com o confronto aberto contra a segregação racial ainda então vigente nos estados sulistas, “Eight Days a Week” reconstitui como a banda fechou questão contra a proposta de um show segregado em Jacksonville, na Flórida.
A historiadora Kitty Oliver era uma jovem afro-americana sem maiores contatos com brancos até aquele setembro de 1964. A determinação anti-racista do pacto firmado entre Paul, John, George e Ringo tornou possível a ela assistir ao show em meio ao público integrado, como Kitty recorda no depoimento mais tocante do filme. Segundo o radialista Larry Kane, que acompanhava a turnê, aquela pioneira apresentação não-segregada de Jacksonville liquidou com a tradição racista de show com espaços distintos para brancos e negros.
Igualmente certeira é a reconstituição por Howard daquele que foi o último show dos Beatles, em 29 de junho de 1966, para 56 mil pessoas no Candlestick Park de São Francisco. Lá culminou o desgaste de uma turnê infernal, iniciada sob a polêmica em solo americano em torno da declaração de Lennon, numa entrevista para a imprensa britânica, de que os Beatles seriam mais populares que Cristo.
Deturpado como autopromoção o que era na verdade um lamento sobre a crise da Igreja, pautou autos-de-fé contra seus álbuns e chamados pelo boicote a gravações e shows. Um pedido de desculpas por John numa coletiva amainou um pouco a reação mas encadearam-se apresentações torturantes em Cleveland, Memphis e St. Louis, sempre lotadas.
Ao saírem num caminhão de frigorífico do estádio californiano, após uma apresentação em que mal se ouviam, os quatro combinaram no ato jamais repetirem a experiência. Iniciava-se a era dos Beatles exclusivamente em estúdio.
Isolados, precocemente amadurecidos, eles reinventaram-se. Em junho de 1967 vinha à luz nada menos que “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, abrindo o auge da inventividade musical do quarteto. Mas este já seria outro filme – quem sabe batizado “The Studio Years”.