Por Amir Labaki
Há setenta anos, completados no final
de julho, morria María Eva Duarte de Péron (1919-1952) e se inflamava o
mito Evita. A plataforma de streaming Star+ certeiramente lembrou a
data com o lançamento da série ficcional “Santa Evita”, baseada no
romance homônimo publicado em 1995 por Tomás Eloy Martínez (1934-2010),
lançado no Brasil pela Companha das Letras e um dos maiores best-sellers
do autor.
Fato e ficção já se embaralhavam
com talento no livro de Eloy Martínez, como o fizera em “O Romance de
Péron” (1985). A série torna essas fronteiras ainda mais fluidas, num
estilo narrativo mais convencional.
Numa deliciosa entrevista em 2007
ao programa da RTP “Por Outro Lado”, da jornalista portuguesa Ana Sousa
Dias, Eloy Martínez explicou didaticamente a origem e a estratégia
narrativa de seu livro. Após a publicação de “O Romance de Péron”, em
que combinava revelações em raras entrevistas com o protagonista e
invenção literária para narrar a saga do caudilho argentino, Eloy
Martínez foi convidado para um encontro por um telefonema de
desconhecidos numa noite em Buenos Aires. Três personagens o chamavam
para corrigir a história de Evita, que ele recriara com a liberdade de
ficcionista em seu primeiro grande sucesso literário.
Os depoimentos e documentos
apresentados lhe serviram de base para a escrita de “Santa Evita”. Eloy
Martínez optou por escrever o livro, conta a Sousa Dias, invertendo os
fundamentos da escola do “Novo Jornalismo” desenvolvida a partir dos
anos 1960 nos EUA por Gay Talese, Lillian Ross, Tom Wolfe e Truman
Capote, entre outros. Eles inovaram ao aplicar técnicas da narração
ficcional para o desenvolvimento de escritos não-ficcionais, sendo “A
Sangue Frio” (1966) de Capote talvez o grande marco do gênero.
Em “Santa Evita”, Eloy Martínez
aplicou-se no oposto: apresentar numa narrativa pretensamente
jornalística um romance sobre a morte e a vida da carismática segunda
mulher do presidente argentino Juan Domingo Péron (1895-1974). A partir
da até então inédita história do sequestro do cadáver embalsamado de
Evita por militares argentinos quando do golpe de estado que derrubou
Péron em 1955, sendo o corpo secretamente enterrado num cemitério de
Milão até sua devolução ao ex-presidente em 1971, o escritor turbinou a
saga, inventando cópias do corpo como estratégia de despistamento dos
sequestradores.
Como prova de seu talento
literário, Eloy Martínez criou ainda frases poderosas para Evita que se
cristalizaram no mundo real como se fossem declarações históricas de sua
personagem. Para seduzir Péron, o escritor a faz dizer: “Obrigada por
existir”. “Voltarei e serei milhões” é outro mote popular jamais falado
por ela.
Ao ver suas palavras ficcionais
serem assumidas como declarações factuais após o lançamento do livro, o
escritor explicou num artigo de jornal que estavam confundindo
literatura e história. Foi rechaçado por adoradores de Evita como um
herege que atentava contra o legado da protetora dos despossuídos. Até
hoje aquelas frases se inscrevem nos altares de adoração a Eva Péron.
Dirigida por Rodrigo García e
Alejandro Maci e escrita por Marcela Guerty, Pamela Rementería e Willy
Van Broock, a série insere uma nova dimensão à espiral ficcional do
livro. Ao invés de mimetizar o estilo de ficção jornalística do
original, assumiu-se uma narrativa audiovisual entre o thriller e o
melodrama e adicionou-se um eixo temporal que ficcionaliza a pesquisa
jornalística de Eloy Martínez para o preparo do romance. Surge assim o
repórter Mariano Vásquez (Diego Velázquez), alter ego do escritor, mas
também com pinceladas de outro jornalista e autor argentino, Rodolfo
Walsh (1927-1977), que no início dos anos 1960 pesquisou e escreveu
sobre o sumiço do cadáver no conto “Esa Mujer” (1966).
Os sete episódios da série se
alternam sobretudo entre três períodos: 1944-1952, do encontro entre
Evita (Natalia Oreiro) e Péron (Dario Grandinetti) à ascensão ao poder e
à morte precoce da protagonista; 1955-1956, quando da derrubada do
presidente e do roubo do corpo embalsamado; e 1971, com a busca por
Vásquez do principal responsável pelo desaparecimento, o lunático
coronel Moori Koenig (Ernesto Alterio). Cenas documentais sucedem-se nos
créditos iniciais do primeiro episódio e pontuam momentos centrais de
cada capítulo; para tornar os limites ainda mais turvos, encena-se um
importante “home movie”.
Um alentado dossier on-line no
site da Star+ detalha os bastidores da produção e distingue o que é fato
do que é ficção. O espectador desavisado talvez atravesse a série,
contudo, assumindo que é tudo verdade.
Se o cinéfilo Tomás Eloy Martínez
ainda estivesse conosco, imagino que gostaria que houvesse na série ao
menos uma piscadela de alerta, na linha da frase do editor ao fim de “O
Homem Que Matou o Facínora” (1962), de John Ford. “Quando a lenda se
torna história, imprima a lenda”, explicita ele sua linha editorial para
o veterano senador interpretado por James Stewart. “Santa Evita” filma a
lenda, sem “disclaimer”.