Por Amir Labaki
No centenário de seu nascimento, completado em março deste ano, Hiroo Onoda (1922-2014) finalmente caiu na terra. Antes, por muito tempo tratava-se de uma quase lenda japonesa, a do soldado que não se rendeu após décadas do fim da Segunda Guerra (1939-1945), uma espécie de Robinson Crusoé do século 20, náufrago numa ilha asiática de uma nação que não sabia derrotada. Um livro de Werner Herzog, “O Crepúsculo do Mundo” (Todavia, 94 págs), e um filme de Arthur Hariri, “Onoda: 10 Mil Noites na Selva” (2021), com estreia na próxima semana, revertem a lenda em história, sem reduzir um milímetro o fascínio de Onoda.
Ei-lo não mais um espectro, por mais repleta de fantasmagorias tenha sido sua jornada florestal de quase três décadas, finalmente em carne e osso. Depois de receber treinamento especial em Futamata para participar numa divisão de elite da inteligência militar japonesa, aos 22 anos o tenente Onoda foi enviado no início de 1945 para a ilha de Lubang nas Filipinas. Suas tarefas eram colher informações sobre o avanço das tropas americanas, dificultá-lo pela destruição da infraestrutura de acesso e, se necessário, recorrer à guerra de guerrilha.
O quadro rapidamente se deteriorou e Onoda partiu para a resistência na selva com três comandados. Informado por camponeses filipinos da rendição japonesa em setembro de 1945, considerou mentirosa a notícia da derrota. Os quatro guerrilheiros do imperador Hirohito (1901-1989) permaneceram lutando, sucumbindo aos poucos até Onoda quedar-se só, nos dois últimos anos antes de seu retorno em 1974.
“Todo soldado japonês está preparado para a morte, mas como um oficial de inteligência ordenaram-me conduzir uma guerra de guerrilha e não morrer”, explicou Onoda. “Você é totalmente proibido de se matar. Sob nenhuma circunstância você deve tirar voluntariamente a própria vida”.
Herzog e Hariri coincidem na estrutura de seus relatos, iniciando-os com o contato inicial que levou o tenente à rendição após 29 anos. Coincidindo em anedotas e episódios da longa história (um chiclete encontrado no meio da selva, uma armadilha com desfecho funesto), suas narrativas distinguem-se essencialmente em duração e em tom.
“O Crepúsculo do Mundo” é uma novela não-ficcional breve, “Onoda”, um filme de quase três horas. A partir de seus encontros pessoais com Onoda, o cineasta alemão desenvolve seu relato como um pesadelo detalhista. “Será possível que só estou sonhando esta guerra?”, filosofa o tenente na recriação herzoguiana, um personagem primo de outros obcecados solitários de sua filmografia, como Brian Fitzgerald do ficcional “Fitzcarraldo” (1982) e Timothy Treadwell do documentário “O Homem Urso” (2005).
Por sua vez, em seu segundo longa-metragem, o diretor francês Arthur Hariri reconstitui compassadamente, em locações no Camboja, as desventuras de Onoda e companheiros, pontuando-as com “flashbacks” sobre sua formação para “a guerra secreta”. Não há um instante de monotonia nas quase três horas de filme, mimetizando nesta longa duração o conturbado cotidiano, pleno em escaramuças e improvisações, das quase três décadas de sobrevivência na selva.
É como se Hariri esculpisse a batalha de Onoda pelas ações de seu corpo, enquanto Herzog as pintasse pelo filtro da mente do tenente. Filme e livro resultam assim experiências complementares, com rimas factuais aqui e ali.
As 10 mil noites na selva praticamente monopolizam as narrativas de ambas as obras, com uma sutil diferença. A versão cinematográfica revisita-lhe pontualmente o passado, mas se cala sobre o futuro de Onoda após a rendição. Já o livro quase nunca se refere à vida pregressa, mas dedica uma espécie de posfácio a resumir em três parágrafos a volta à vida civil de Onoda e, nas três páginas seguintes, um dos encontros de Herzog com Onoda, no polêmico Santuário Yasukuni em Tóquio, que preserva sua farda remendada e puída entre os mais de dois milhões e meio de nomes dos que tombaram em luta pelo Japão.
Seguindo os passos de seu irmão mais velho, Onoda mudou-se para o Brasil pouco tempo depois de despedir-se de Lubang, tornando-se criador de gado no Mato Grosso do Sul. A partir de meados dos anos 1980, lembra Herzog, “boa parte do ano, no entanto, passava em sua terra natal, onde abriu uma escola privada, a Escola da Natureza”. Em 2004, a Força Aérea Brasileira (FAB) atribuiu-lhe a Medalha Santos Dumont. Não é exatamente estimulante saber que um personagem tão extraordinário tenha vivido tão proximamente parte expressiva de seus últimos anos em virtual invisibilidade para jornalistas, escritores e cineastas do país.
Azar nosso, mais uma vez condenados à nota de rodapé de uma das sagas mais excepcionais do século 20. Demorou, mas Werner Herzog e Arthur Hariri resgataram o tenente Hiroo Onoda da vala comum dos lunáticos da história.