Por Amir Labaki
É hora de eleição também na esfera cinematográfica. Encerrou-se na segunda-feira passada (8) o prazo para cineastas, críticos e curadores do mundo inteiro enviarem seus votos sobre Os Maiores Filmes da História a convite da revista britânica de cinema Sight & Sound, publicada pelo British Film Institute (BFI). A apuração está em andamento e deverá ter seu resultado conhecido num dos próximos números da revista editada desde 1932.
A sacada da lista nasceu em 1952, repetindo-se a cada década desde então. Os dez mais da lista da Sight & Sound se tornaram um sismógrafo regular da sensibilidade fílmica planetária, ao menos segundo a imprensa especializada e, a partir de 2012, também dos próprios cineastas, com uma votação específica.
Quando realizada a primeira votação, o cinema tinha pouco mais de meio século e metade de sua história se desenvolvera com a produção ainda silenciosa. Não surpreende, assim, que a primeira relação de favoritos dividia-se ao meio entre cinco filmes mudos e cinco produções da era sonora, equilíbrio nunca mais alcançado.
A lista inaugural, em ordem decrescente de votos, apresentava “Ladrões de Bicicletas” (1948), de Vittorio De Sica, “Luzes da Cidade” (1931), de Charles Chaplin, “A Corrida do Ouro” (1925), também de Chaplin, “O Encouraçado Potemkin” (1925), de Serguei Eisenstein, “Intolerância” (1916), de D. W. Griffith, “Louisiana Story” (1948), de Robert Flaherty. “Ouro e Ambição” (1924), de Erich von Stroheim, “Trágico Amanhecer” (1939) de Marcel Carné, “A Paixão de Joana d’Arc” (1928), de Carl T. Dreyer, “Desencanto” (1945), de David Lean, “A Regra do Jogo” (1939), de Jean Renoir, e “O Milhão” (1931), de René Clair.
O neorrealismo italiano já vivia seu crepúsculo, mas sua força renovadora, com filmagens ao exterior, longe de estúdios, combinando atores profissionais e amadores, atingia seu ápice de influência e reconhecimento, catapultando ao topo da primeira lista um de seus títulos mais tocante, “Ladrões de Bicicletas”. Emplacando dois filmes, na segunda e terceira posições, Chaplin era coroado como o rei do primeiro meio século de cinema -para curiosamente nunca mais voltar a conquistar sequer uma vaga para qualquer de seus filmes entre os dez mais.
Sorte inversa teve “A Regra do Jogo”, a sátira sobre a alta burguesia francesa dirigida por Jean Renoir às vésperas da eclosão da Segunda Guerra (1939-1945). É o único filme a aparecer entre os dez mais nas sete listas de favoritos. A nona posição em 1952 foi seu ranking menos expressivo, alcançando suas melhores posições ao emplacar no segundo posto em 1972, 1982 e 1992. Feito similar registra apenas o engajado “O Encouraçado Potemkin” de Eisenstein, que se manteve entre os dez favoritos nas seis votações seguintes, saindo da lista apenas em 2012, ainda assim para um honroso 11º. posto.
O grande ausente da relação inicial é “Cidadão Kane”, de Welles, possivelmente pelo fato de sua estreia ter se dado nos EUA em meio à Segunda Guerra, alcançando maior distribuição na Europa (sede principal dos votantes de 1952) apenas encerrado o conflito. “Kane” estreou na lista já em primeiro lugar em 1962 e prosseguiu no topo até a penúltima votação, em 2002, caindo para a segunda posição somente em 2012, com a ascensão de “Um Corpo Que Cai” (1958), de Alfred Hitchcock. O auge do prestígio de Welles parece ter sido alcançado em 1972 e 1982, com “Soberba” (1942) juntando-se a “Kane” nos dez mais.
É curioso avançarmos no tempo e checarmos a relação de dez anos atrás. “Um Corpo Que Cai” e “Cidadão Kane” puxam a fila, seguidos por “Tokyo Story” (1953), de Yasujiro Ozu, “A Regra do Jogo”, o silencioso “Aurora”, rodado em Hollywood pelo alemão F. W.Murnau, “2001, Uma Odisséia no Espaço” (1968), de Stanley Kubrick, “Rastros de Ódio”, de John Ford, o documentário silencioso “O Homem Com a Câmera de Filmar” (1929), de Dziga Viértov, “A Paixão de Joana D’Arc”, e “8 e 1/2” (1963), de Federico Fellini.
A consagração de “Um Corpo Que Cai” é um fenômeno de certa forma recente, tendo adentrado os dez mais da Sight & Sound apenas em 1982, na oitava posição, galgando postos desde então (4º em 1992, 3º. em 2002). A destacar ainda a recuperação do prestígio da produção silenciosa, com três filmes, a maior porcentagem desde 1952, creio, impulsionado pelo extraordinário impulso de redescoberta do cinema de patrimônio pela multiplicação de laboratórios de restauro digital de filmes e sua consequente maior visibilidade em festivais específicos (Pordenone, Il Cinema Ritrovato) e pelas mostras reservadas a estas revisitas nos grandes festivais (Cannes, Berlim e Veneza).
A celebrar ainda na lista de 2012 a ascensão inédita de um documentário ao topo do cânone, com a presença de “O Homem Com a Câmera de Filmar”, num evidente reconhecimento para a maior atenção para o documentário dada a pujança contemporânea da produção não-ficcional. A reclamar, contudo, a ausência, nas sete primeiras listas de favoritos, de filmes dirigidos por mulheres, negros, cineastas LGTBQ+ e indígenas, assim como de animações. A checar se, em tempos mais inclusivos, o ponteiro finalmente se mexe na próxima relação da Sight & Sound.