Por Amir Labaki
 
Zelito Viana é um homem-cinema. 
São quase seis décadas de dedicação. Como poucos, fez de tudo, e assim 
nos conta no livro de memórias que finalmente lança, “Os Filmes e Eu” 
(Record, 296 págs, R$ 69,90). 
 
Engenheiro de formação, Zelito é 
sobretudo produtor e diretor, mas também ator e fotógrafo, roteirista e 
selecionador musical, fomentador público (na Embrafilme de Roberto 
Farias de meados dos anos 1970) e distribuidor comercial (até de VHs e 
DVDs na Globo Vídeo). Há 57 anos mantem ativa sua produtora, a MAPA, que
 herdou o nome da revista cultural baiana tocada, entre outros, pelo 
jovem Glauber Rocha (1939-1981). 
 
Seus primeiros passos na produção 
coincidem com a aurora do Cinema Novo. Pudera: um de seus próceres, 
ninguém menos que Leon Hirszman (1937-1987), seu colega nos estudos de 
engenharia, o convidou para fazer a transição profissional. No calor da 
hora, ou algum tempo depois, Zelito trabalhou com boa parte da patota: 
Cacá Diegues, Eduardo Coutinho (1933-2014), Glauber, Leon, Paulo César 
Saraceni (1932-2012), Walter Lima Jr.
 
No documentário rodado por Joaquim
 Pedro de Andrade (1932-1988) sobre o movimento para uma TV alemã, 
“Cinema Novo -Improvisiert Und Zielbewusst” (1967), ei-lo apresentado 
correndo salas de cinema, ao lado de Cacá, para conferir o público de “A
 Grande Cidade”. Outro registro histórico está no livro: a Santa Ceia do
 Cinema Novo segundo David Drew Zingg (1923-2000), na foto batida em 
1967 em mesa do Bar Zeppelin, em Ipanema, Rio. Quatro já se foram: 
Nélson Pereira dos Santos (1928-2018), Leon, Glauber e Joaquim Pedro. 
Quatro mantém alto a bandeira: Luiz Carlos Barreto, Ruy Guerra, Walter 
Lima Jr e o próprio Zelito.
 
“Os Filmes e Eu” repassa, em prosa
 despojada e ordem cronológica, a vida do cearense que se especializou 
na Europa em engenharia siderúrgica até não resistir ao chamado de Leon.
 A agilidade com números serviu-lhe de passaporte inicial. O amor por 
filmes desde a infância prenunciava a guinada. A proximidade com um dos 
irmãos mais velhos, o extraordinário humorista e escritor Chico Anysio 
(1931-2012), referendava a vocação familiar.
 
Sem cerimônia, Zelito reconstitui 
sua trajetória, discorrendo tanto sobre os grandes filmes que produziu e
 dirigiu quanto sobre os trabalhos de ocasião, de institucionais a 
campanhas políticas. A memória prodigiosa oferece anedotas deliciosas 
sobre quase todas as produções e perfis breves e carinhosos sobre 
personalidades (João Gilberto, Juruna, Mário Henrique Simonsen) e 
anônimos marcantes com quem conviveu.
 
“Terminar ‘Cabra Marcado para 
Morrer’ foi minha primeira tarefa a executar no mundo de cinema”, lembra
 Zelito. Duas décadas se passaram até conclui-la. Interrompidas as 
filmagens devido à eclosão do golpe de 1964, a inviabilidade de terminar
 o filme foi reconhecida a partir de uma projeção do copião nos 
laboratórios da Líder no Rio. “Nos vinte anos que se seguiram ao golpe 
militar, Eduardo Coutinho foi um homem obcecado pelo desejo de completar
 sua obra”, testemunha. O que era uma ficção engajada, na linha do CPC 
(Centro Popular de Cultura), se reencantaria num documentário de 
cristalina originalidade.
 
Zelito debutou como produtor com 
“A Grande Cidade” (1966), longa-metragem de estreia de Cacá Diegues, a 
quem conhecia de vista dos tempos no tradicional colégio Santo Inácio. 
Voltariam a trabalhar juntos em “Quando o Carnaval Chegar” (1973) e 
“Veja Esta Canção” (1994).
 
A parceria mais prolífica foi com 
Glauber, a quem conheceu na saída da citada projeção do primeiro “Cabra”
 na Líder. Estiveram juntos do curta documental “Maranhão 66” até o fim 
da década: “Terra em Transe” (1967), “Câncer” (1968), “O Dragão da 
Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1968), “Der Leone Have Sept Cabeças” 
(1970). O título do último foi sacada dele. A recusa em produzir “A 
Idade da Terra” (1980) os afastou até a precoce morte de Glauber em 
1981.
 
Nem só de obras-primas se constrói
 mais de meio século de carreira audiovisual. É assim admirável como 
Zelito não se furta de recordar produções eminentemente comerciais de 
grande sucesso, como o policial “Máscara da Traição” (1969) de Roberto 
Pires, com o casal Glória Menezes/Tarcísio Meira, e de retumbante 
fracasso, como sua primeira direção solo, “O Doce Esporte do Sexo” 
(1970), uma comédia de esquetes protagonizada pelo irmão, Chico Anysio.
 
Filmes melhores viriam. Adaptado 
do romance “Alma” de Oswald de Andrade (1890-1954), “Os Condenados” 
(1974) talvez seja ainda seu ápice no cinema ficcional. Rodado durante 
dois anos, “Terra dos Índios” (1979) é um marco na denúncia da violência
 contra as nações indígenas brasileiras, infelizmente ainda atualíssimo.
 Devemos a Zelito ainda os melhores retratos do poeta Ferreira Gullar 
(1930-2016), do dramaturgo Augusto Boal (1931-2009) e de seu 
multitalentoso irmão (“Chico Anysio É”, de 2006). O músico Egberto 
Gismonti será o próximo, anuncia o livro. O homem-cinema não para.