Por Amir Labaki
Um dos mais interessantes debates audiovisuais do momento nos EUA foi catalisado pela estreia recente na HBO Max de “A Escada”, minissérie ficcional do cineasta Antonio Campos (filho novaiorquino do jornalista brasileiro Lucas Mendes) inspirada por um dos marcos fundamentais da narrativa seriada documental, “Morte na Escadaria” (Netflix), realizada em três etapas, entre 2004 e 2018, pelo diretor francês Jean-Xavier de Lestrade. O documentário acompanhou o julgamento do escritor Michael Peterson pelo assassinato de sua esposa, Kathleen, encontrada morta em dezembro de 2001 ao pé da escadaria da mansão familiar em Durham, na Carolina do Norte.
Acidente ou crime? Distinguido pelo Oscar de melhor longa documental de 2002 por “Assassinato Numa Manhã de Domingo”, De Lestrade gravou no calor da hora o desenrolar do longo novelo de hipóteses e evidências alternadamente puxado pela promotoria e pela equipe de defesa.
Spoiler: Peterson, que sempre se afirmou inocente, foi condenado à prisão pérpetua pelo assassinato em 2003. Solto em 2008 para novo julgamento, o evitou encerrando o caso em 2017 ao fechar um “Alford plea” (acordo inexistente no Brasil, e previsto na maioria dos estados dos EUA, em que o acusado reconhece que as provas contra ele podem condená-lo, mas sem admitir culpa).
Ao transformar o processo de produção da série documental original em linha narrativa de igual importância dramática à trama essencialmente criminal, Campos diferenciou “A Escada” das tradicionais refilmagens ficcionais de documentários. A dimensão metacinematográfica deixou de ser meramente anedótica para se tornar essencial ao enredo. Construída por meio de avanços e recuos no tempo de precisão cirúrgica, “A Escada” se situa na prateleira superior das séries ficcionais recentes.
O problema é definir qual o limite ético para a dramatização da prática documental. Creditado como um dos produtores executivos de “A Escada”, De Lestrade abriu para Campos centenas de horas do material bruto das gravações, mas não leu o roteiro e tampouco procurou ver a série antes da estreia. Ao assisti-la, declarou para a revista Vanity Fair: “Entendo que você dramatize. Mas quando você ataca a credibilidade de meu trabalho, isso é realmente inaceitável para mim”.
“Alega-se que editamos a série documental de maneira a ajudar o recurso de Peterson, o que não é verdade”, reclamou De Lestrade. Para ele, Campos “cruzou a fronteira” no quinto episódio (O Coração Pulsante). Nele surge alterada a cronologia histórica do envolvimento romântico com Peterson de uma das montadoras da série, Sophie Brunet (interpretada por Juliette Binoche).
Brunet iniciou uma correspondência com o escritor, após sua condenação, mas, segundo ela e De Lestrade, apenas depois de ela ter deixado o projeto. A ficção forjou, assim, um conflito ético inexistente no real processo de produção da primeira temporada da série documental. “A Escada” cria sequências que inserem uma explícita ruptura de neutralidade na dinâmica da edição do material bruto: Brunet aparece advogando uma estrutura mais favorável à tese da inocência de Peterson para o capítulo final da temporada 1, enquanto o produtor defende o contrário.
Tudo se torna mais complexo quando se sabe que Brunet e Peterson mantiveram uma relação amorosa pelos anos seguintes e nem ela nem De Lestrade consideraram isso um impedimento para que ela retomasse a edição das duas temporadas seguintes. Montadora e protagonista eram um casal durante os trabalhos nos dois episódios da segunda temporada, em 2012, mas já haviam se separado quando da produção dos três episódios finais, em 2018.
“Minha relação com Michael nunca afetou minha montagem”, asseverou Brunet à Vanity Fair. “Nunca cortei nada que fosse prejudicial a ele. Tenho uma opinião elevada demais de meu trabalho para ser o mais remotamente tentada a fazer algo assim. E Jean jamais deixaria isso acontecer de maneira alguma”.
Sophie Brunet saiu em defesa do documentarista também quanto a outra questão controversa de “A Escada”. O Jean-Xavier Lestrade ficcional (Vincent Vermingnon) aparece, numa cena ao final do segundo episódio (Querópteros), dirigindo Peterson (Colin Firth) como se fosse um ator. “Podemos fazer de novo”, diz ele para o entrevistado após um depoimento. “Com mais emoção”.
“Jean nunca pediu a Michael para repetir uma afirmação”, garantiu Brunet. “Ele queria estar tão próximo da verdade quanto possível”.
Michael Peterson, por sua vez, acusou De Lestrade de ter agido como um “gigolô”, ao “vender NOSSA história a Campos por dinheiro”. Escreveu ainda para Variety que “há fabricações flagrantes e distorções da verdade na série da HBO, muito além do que pode ser considerada licença ‘artística’”.
Em nota a HBO Max respondeu a Peterson: “‘A Escada’ é uma série ficcionalizada baseada em fatos reais. Cada episódio é acompanhado por um aviso que afirma que é ‘uma dramatização baseada em certos fatos’”. A escadaria parece longe de esgotar sua espiral de controvérsias.