Por Amir Labaki
A imensa repercussão de sua despedida, no último dia 17 de junho, talvez arrancasse um último sorriso irônico do ator francês Jean-Louis Trintignant (1930-2022). Tímido e delicado na vida privada como nos palcos e nas telas, Trintignant era uma espécie de estranho no ninho no panteão de intérpretes do cinema francês dos anos 1960 e 1970 que formou ao lado de Alain Delon e Jean-Paul Belmondo (1933-2021). Simbólico desta discrição foi o contraste entre o retumbante funeral público consagrado no ano passado a Belmondo em Paris, na presença do presidente Emmanuel Macron, e a cerimônia íntima, na mediterrânea Nîmes ao sul da França, que reuniu, na penúltima quarta-feira (22), apenas a família e contados amigos das artes, como o cineasta Claude Lelouch e o ator Charles Benning.
Na mesma noite deste singelo sepultamento, a principal atração da programação em sua homenagem apresentada pelo canal por assinatura franco-alemão Arte foi o documentário “Trintignant par Trintignant” (2021), de Lucie Cariès e Yves Jeuland. Um depoimento e uma filmagem exclusivos e um vasto material de arquivo se articulam em hipnóticos 52 minutos em que o elusivo ator se reconta. Estava em mãos experimentadas: Cariès retratara antes o comediante Louis de Funès (1914-1983) e lançou em maio em Cannes “Romy, Femme Livre”, sobre Romy Schneider (1938-1982). Jeuland, por sua vez, dirigiu dois retratos impecáveis de ninguém menos que Jean Gabin (1904-1976) e Yves Montand (1921-1991), exibido este último pelo É Tudo Verdade 2022.
O fato de Trintignant ter jogado o jogo do ator célebre com notável franqueza, sem embargo do constante desconforto, auxilia a estruturação da narrativa autobiográfica. Não à toa inicia-se o filme com ele se autodefinindo: “Eu, sou sobretudo um ator tipo gato. Os gatos não são espontâneos, você sabe. Durante anos passei minhas cenas com a cabeça baixa, com um sotaque meridional, em tom monocórdico”.
“Ser ator”, definiu anos mais tarde, “é alguém que se machuca. Não se pode jogar com a própria sensibilidade sem se machucar”.
Nascido na alta burguesia de uma pequena cidade do sul da França, Trintignant conheceu o primeiro dos três grandes traumas de sua vida na adolescência durante a ocupação alemã da França na Segunda Guerra (1939-1945). Ao fim do conflito, seu pai retornou da prisão pelas atividades na Resistência para encontrar a mulher, mãe dos dois filhos, com os cabelos raspados como punição pelo relacionamento mantido em sua ausência com um soldado germânico.
“Eu me sentia preso no interior”, contou. “Queria vir a Paris. Não sabia se seria ator ou diretor (de cinema). Queria respirar mais amplamente”. Mudou-se em 1949, iniciando no teatro e, em 1951, entrando para cursar direção no IDHEC, o Instituto de Altos Estudos Cinematográficos.
Recém-formado, sorriu-lhe a sorte no primeiro papel de destaque num filme: nada menos que o de jovem marido traído por Brigitte Bardot em “E Deus Criou a Mulher” (1956), de Roger Vadim. BB foi catapultada fulminantemente como “sex symbol” global, elevando Trintignant a estrela imediata, até por conquistá-la dos braços do diretor. “Eu não merecia”, relembraria, nada complacente. “Não estava bem no filme”.
O cumprimento tardio do serviço militar o refugiou, no ano seguinte, do frenesi midiático. “Por três anos não trabalhei”. Um “Hamlet” exaustivamente ensaiado o devolveu à carreira. “Acho que encontrei uma forma de atuar no teatro, tão simples como no cinema -mas não era bom”.
Uma comédia existencial italiana ao lado de Vittorio Gassman, simplesmente “Aquele Que Sabe Viver” (1962) de Dino Risi, reconciliou-o com o estrelato. “Faço filmes italianos comerciais e filmes franceses ambiciosos”, afirmaria. Uma exceção à regra o imortalizou definitivamente no imaginário planetário: o drama romântico “Um Homem, Uma Mulher” (1966), de Claude Lelouch, Palma de Ouro em Cannes. “Um filme de produção muito pobre”, frisou com ironia.
Três anos mais tarde ele voltava à Croisette com três filmes em competição: “Minha Noite com Ela”, de Éric Rohmer, “Numa Noite... Um Jantar”, do italiano Giuseppe Griffi, e “Z”, de Costa-Gavras. Numa entrevista de bastidores, descartava a chance de premiação. “Não sou um ator para prêmio de interpretação. Não sou um ator de efeito. (...) São papéis em meios-tons, ambíguos, complexos. Não sou um ator brilhante”. Venceu, pelo austero juiz de instrução de “Z”.
O auge da carreira ainda estava por vir -e tragicamente se vinculou ao segundo grande trauma: a perda de um bebê de um ano, durante as filmagens em Roma de “O Conformista” (1970), de Bernardo Bertolucci. “Ë difícil dizer se foi meu melhor papel. Sim, foi o mais difícil. Mas é certamente o melhor filme de que participei”. E conclui: “É talvez o que fiz de melhor e, ouso dizer, por causa deste drama”.
Sempre exigente, se firmou na década seguinte como um ator do melhor do cinema europeu de autor (Chabrol, Scola, Truffaut, Zurlini) e preferência por filmes políticos (Sem Motivo Aparente; O Atentado; Chove Sobre Santiago). Pude testemunhar no festival de Veneza de 1987, do qual participava com “La Vallée Fantôme” de Alain Tanner, certa monotonia com a carreira: na coletiva, um irascível Trintignant surpreendeu a todos com um anúncio de aposentadoria. Pausas para retiros no campo se tornaram frequentes, sobretudo no final dos anos 1990.
Da terceira e definitiva tragédia, Trintignant jamais se recuperaria: o assassinato em 2003 de sua filha, a atriz Marie Trintingnant (1962-2003), que estreara com ele nas telas (Mon Amour, Mon Amour, 1967) e recentemente o ajudara a reconquistar os palcos. “Me aconteceu o pior que pode acontecer. Perdi a pessoa que mais amava no mundo”, desabafou.
Seu refúgio foi o teatro -e os poetas. Primeiro, Apollinaire; depois, em seguida, “Três Poetas Libertários”: Boris Vian, Jacques Prévert e Robert Desnos.
Trintignant ainda tinha nele uma última grande performance -em torno naturalmente do amor e da morte. Ao subir ao palco do Palais para receber ao lado do diretor Michael Haneke e da atriz Emmanuelle Riva a Palma de Ouro de 2012 para “Amor”, pediu licença para citar Prévert: “E se nós tentarmos ser felizes, não será para dar exemplo?”. Há incomensurável bravura neste singelo epitáfio.