Por Amir Labaki
É simbólico, embora sem vínculo direto, e por certo promissor que o recente retorno à atividade da Cinemateca Brasileira em São Paulo coincida com a inclusão de dois títulos nacionais entre os 397 filmes programados entre amanhã (sábado, 25) e 3 de julho pela 36ª edição de Il Cinema Ritrovato, o principal festival dedicado ao patrimônio cinematográfico mundial, realizado em Bolonha, Itália.
A extraordinária cópia restaurada de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), de Glauber Rocha, lançada pioneiramente no mês passado dentro de Cannes Classics no festival francês, será exibida dentro do ciclo Cinemalibero, dedicada “a uma viagem através de filmes nascidos nas margens e que nos incitam a reconsiderar o canône da história do cinema”. Por sua vez, “Já Que Ninguém Me Tira Para Dançar” (2021), de Ana Maria Magalhães, o retrato da atriz e musa de nossa contracultura Leila Diniz (1945-1972), morta há meio século num acidente aéreo na Índia, é uma das atrações da mostra Documentos e Documentários, ao lado de perfis fílmicos de estrelas como Maurice Chevalier e Yves Montand.
Duas das principais atrizes italianas do pós-guerra, Sophia Loren e Stephanie Sandrelli, ganham homenagens especiais. No ciclo “Forever Sophia” (Para sempre Sophia) serão projetados clássicos como “Duas Mulheres” (1960), de Vittorio de Sica, que lhe valeu o Oscar de melhor atriz, “Arabesque”, de Stanley Donen, talvez seu mais cultuado filme hollywoodiano, e “Um Dia Muito Especial” (1977), de Ettore Scola, forte candidato a seu último grande filme.
Celebrada pelo poster desta edição na célebre cena de dança de “O Conformista” (1971), de Bernardo Bertolucci, Sandrelli apresentará a cópia restaurada do filme, numa sessão que deve se tornar ainda uma pontual homenagem póstuma a seu protagonista masculino, o francês Jean-Louis Trintignant (1930-2022), um dos intérpretes mais sutis e marcantes do cinema de autor em mais de sete décadas de atividade, de “Aquele Que Sabe Viver” (1962), de Dino Risi, a “Amor” (2012), de Michael Haneke, passando por nada menos que “Z” (1969), de Costa-Gavras, e “A Fraternidade É Vermelha”(1994), de Krzystof Kieslowski, para não falar de filmes de extraordinária empatia popular como “E Deus Criou a Mulher” (1956), ao lado de Brigitte Bardot sob a direção de Roger Vadim, e “Um Homem, Uma Mulher” (1966), ao lado de Anouk Aimée sob a batuta de Claude Lelouch (Palma de Ouro em Cannes, Oscar de filme estrangeiro).
Uma das grandes sacadas do festival deste ano é a celebração ao ator Peter Lorre (1904-1964). Nascido no então império austro-húngaro numa família judaico-húngara, o jovem Lorre trabalhou nos palcos com Bertolt Brecht e explodiu nas telas como o infanticida de “M, O Vampiro de Düsseldorf” (1931), de Fritz Lang, e um dos vilões da primeira versão de “O Homem Que Sabia Demais” (1934), de Alfred Hitchcock.
A ascensão ao poder de Hitler o levou a abraçar o exílio hollywoodiano em 1935 e Hollywood explorou-lhe o talento sobretudo como coadjuvante exótico (Relíquia Macabra, 1941; Casablanca, 1942) e protagonista de filmes B (a série como investigador japonês Mr. Moto, entre 1937 e 1939; os filmes de horror de Roger Corman do início dos anos 1960). Com curadoria de Alexander Horwath, o ciclo “Peter Lorre: Stranger in A Strange Land” (Estranho numa terra estranha) não abre mão de apresentá-lo nas obras-primas de Lang e Hitchcock, mas prescinde dos títulos mais conhecidos em favor de performances algo subterrâneas como o Raskolnikov do “Crime e Castigo” (1935) de Josef von Sternberg ou outro assassino em série em “Der Verlorene” (O Homem Perdido, 1951), sua única experiência como diretor, admirada por ninguém menos que o documentarista Harun Farocki.
Il Cinema Ritrovato 2022 dedica ainda um ciclo à comédia musical alemã do período entre 1930 e 1932, imediatamente anterior às trevas nazistas e recupera a produção dos anos 1950 e 1960 da hoje extinta Iugoslávia socialista, além de revisitar a safra internacional de 1922 (o pioneiro documentário “Nanook, O Esquimó”, de Robert Flaherty, à frente). Quatro cineastas pouco lembrados ganham focos em suas principais produções.
O francês Victorin-Hippolyte Jasset (1862-1913) foi um dos pioneiros dos seriados policiais, com títulos como “Nick Carter, O Rei dos Detetive” (1908) e “Zigomar, O Rei dos Ladrões” (1910). Kenki Misumi (1921-1975) distinguiu-se como um dos principais especialista japoneses em filmes de época (jidai-geki), como “A Espada” (1964).
Mais conhecido por sua única peça, “Marat/Sade” (1963), o tcheco exilado na Suécia Peter Weiss (1916-1982) tem finalmente revelada sua intensa atividade como cineasta experimental (Miragem, 1959). Por fim, o argentino Hugo Fregonese (1908-1987) debutou em seu país natal (Pampa Bárbara, 1945), mas se tornou cineasta itinerante pelos EUA e Europa, definido pelos curadores Dave Kehr e Ehsan Khoshbakht como “um mestre de faroestes rápidos e não sentimentais (Sangue da Terra, 1953) e policiais (Terça-Feira Trágica, 1954)”.
Lamba os beiços, sim, mas infelizmente desta vez, ao contrário das duas edições anteriores golpeadas pela pandemia, não haverá uma seleção do programa em streaming internacional. Tomara no próximo ano atentem para os órfãos planetários do Il Cinema Ritrovato.