Por Amir Labaki
Antes de tornar-se crítico de cinema e logo cineasta de proa da “Nouvelle Vague”, François Truffaut (1932-1984) imaginou uma carreira de romancista. “Um pouquinho, talvez aos 11 anos”, confessou ele em 1964 ao jornalista e cineasta bissexto Philippe Labro. “Entre 1942-1943, quando li (Emile) Zola”. Foi “Thérèse Raquin” que lhe deixou a mais forte impressão.
Quando de sua morte precoce, com apenas 52 anos, por um fulminante câncer de cérebro em outubro de 1982, o número especial dedicado a ele em dezembro do mesmo ano pelos “Cahiers du Cinéma”, a revista que definitivamente o celebrizou como crítico ao lado de futuros colegas de profissão como Éric Rohmer, Jacques Rivette e Jean-Luc Godard, se intitulou “Le Roman de François Truffaut” (O Romance de François Truffaut). O aspecto romanesco do conjunto de sua obra e de cada um de seus filmes é insuperável entre seus companheiros de viagem, a começar da saga de “volumes” com a trajetória da infância à maturidade Antoine Doinel (Jean-Pierre Leaud), de seu filme de estreia, “Os Incompreendidos” (1962) a “O Amor em Fuga” (1979).
Não surpreende que Balzac era um de autores prediletos e o algo autobiográfico “O Lírio do Vale” (1835), um dos tomos de “A Comédia Humana”, seu romance preferido. “Minha ambição é a de fazer filmes que se pareçam com romances”, assumiu Truffaut em 1982 à revista literária “Lire”.
Nada mais natural, assim, do que a organização por Bernard Bastide de “François Truffaut – Correspondance avec des ecrivains: 1948-1984” (Correspondência com escritores: 1948-1984), publicado na França em meados deste semestre pela Gallimard (528 págs, 24 euros). O volume complementa a publicação do incessante epistolário truffautiano aberto em 1988 pela edição de cerca de 500 cartas por Gilles Jacob e Claude de Givray (Hatier/5 Continents, 1988, 671 pages).
A fonte principal das cartas enviadas e recebidas entre o cineasta e escritores são as 128 caixas de correspondências do Fundo François Truffaut da Cinemateca Francesa, mas Bastide pesquisou ainda em coleções dispersas de missivistas constantes do diretor de “O Homem Que Amava As Mulheres” (1977). A primeira, escrita aos 16 anos quando da organização de um cineclube, tinha por destinatário ninguém menos que o poeta, dramaturgo e cineasta bissexto Jean Cocteau (1889-1963), iniciando uma amizade que se estenderia até a morte do autor de “A Voz Humana” (1930). A última, reproduzida também em fac-símile, não passa de um bilhete manuscrito com votos de feliz ano novo, em janeiro de 1984, ao padre, escritor e cinéfilo Jean Mambrino (1923-2012), que conhecera em 1954 por intermédio de seu principal mentor, o crítico de cinema devotamente católico André Bazin (1918-1958).
As correspondências com Cocteau e Mambrino estão entre as mais regulares no período de 36 anos coberto pelo livro e representam trocas curiosamente polares. Com o primeiro, as cartas são breves e quase sempre giram em torno de questões profissionais; Truffaut foi um dos cinco produtores do último longa-metragem de Cocteau, “O Testamento de Orfeu” (1960). Curiosamente, é com o padre que se encontram algumas das mais intensas discussões sobre cinema do volume, notadamente em torno de Alfred Hitchcock, Roberto Rossellini e Jean Renoir.
Bastide classifica certeiramente “quatro grandes famílias de correspondentes literários”. A primeira é com autores renomados contatados pelo jovem François: o citado Cocteau, o escritor e dramaturgo Jean Genet, o crítico e romancista Jacques Audiberti. A segunda envolve escritores de livros adaptados para as telas pelo cineasta, como Maurice Pons (o curta “Os Pivetes”, 1957), David Goodis (Atirem no Pianista, 1961), Henri Pierre Roché (Uma Mulher Para Dois, 1962; Duas Inglesas e o Amor, 1971), Ray Bradbury (Fahrenheit 451, 1966).
Uma correspondência de circunstância marca o terceiro grupo, de personalidades célebres como Jean-Paul Sartre, Georges Simenon (um de seus autores prediletos) e Marguerite Duras (uma das raras mulheres do volume, ao lado de Louise de Vilmorin). Por fim, na quarta “família” Truffaut surge como incentivador de jovens autores, notadamente Serge Rezvani, compositor da célebre canção “Le Tourbillon” de “Uma Mulher para Dois”, e o belga Bernard Gheur, cujo primeiro romance (Le Testament d’un Cancre, 1970) o diretor aceita prefaciar.
Duas das cartas concernem o Brasil. Em 15 de junho de 1962, Truffaut desculpa-se com o então conselheiro da embaixada francesa no país, Albert Chambon, pelo desencontro durante sua breve visita ao Rio de Janeiro em missão da Unifrance ao lado de Jean-Paul Belmondo e Phillipe de Broca, entre outros, quando sua agenda foi encurtada ao passar “no quarto dois dias devido a uma gripe”. No mesmo dia, o cineasta escreve ao escritor (e futuro cineasta) Roman Gary agradecendo-lhe o envio de dois livros e dizendo-se “muito contente de conhecê-lo” como colega de júri no mês anterior no 25º Festival de Cannes, quando premiaram com a Palma de Ouro “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte -numa solução de “compromisso” de jurados que mantiveram “um diálogo de surdos”, tamanha a diversidade, segundo Truffaut confessaria numa entrevista ao semanário “L’Express” seis anos mais tarde. Quando a ziquizira presente é grande, até o passado assombra, cabuloso.