Por Amir Labaki
Demorou, mas o documentário brasileiro finalmente enfoca um
dos maiores traumas nacionais após a redemocratização de 1985. Disponível na
HBO Max desde fins do ano passado, “Confisco”, de Felipe Tomazelli e Ricardo
Martensen, aborda os preparativos, a implementação, as polêmicas e as sequelas
sociais do chamado Plano Brasil Novo, ou Plano Collor, adotado um dia depois da
posse, em 15 de março de 1990, de Fernando Collor de Mello como o primeiro
Presidente da República eleito diretamente desde 1960.
Visando afastar o espectro da hiperinflação, decretou-se,
entre outras medidas, o congelamento da noite pro dia dos depósitos bancários
(incluindo cadernetas de poupança) superiores ao limite de 50 mil cruzados
novos, então rebatizados de cruzeiros, com a promessa da devolução do excedente
a partir de 18 meses. O jornalista econômico Joelmir Beting (1936-2012), no
calor da hora, definiu: “É um arrocho monetário nunca visto na história da
humanidade”.
Num discurso inflamado, Collor bradou: “O Brasil não aceita
mais desastres. Agora é vencer ou vencer. Que Deus nos ajude”. Dois anos e meio
e mais dois planos depois, foi afastado da Presidência por um processo de
impeachment envolvendo denúncias de corrupção, renunciando em 29 de dezembro de
1992, pouco antes de seu afastamento definitivo ser julgado pelo Senado
Federal.
“Confisco” não é ainda o necessário filme sobre a trágica
presidência Collor. Para uma visão de conjunto, talvez nada supere a leitura de
“Notícias do Planalto”, de Mario Sergio Conti (Companhia das Letras, 2000).
Tomazelli e Martensen concentram-se sobre um dos atos definidores de sua
voluntarista administração, pelo impacto imediato e devastador no cotidiano de
toda a população.
A grande sacada de “Confisco” é estruturar-se em torno de
duas histórias com o Plano Collor ao centro: as trajetórias da ministra da
Economia Zélia Cardoso de Mello e da família do então pequeno empresário de
caminhões Dorival Silva -eleitor, assim como a esposa Ester, do propagandeado
“caçador de marajás”. Em torno de seus depoimentos e das gravações de suas
atuais rotinas, o quadro maior é cimentado com imagens de arquivo e entrevistas
com participantes e testemunhas (Collor, claro, disse não).
De seu apartamento em Nova York, para onde se mudou em 1997
com o então marido, Chico Anysio, e os dois filhos, Zélia concede o que me
parece a mais detalhada entrevista filmada sobre os bastidores de sua
participação no governo Collor. Lembra que “a situação era gravíssima”,
reconhece a liberdade total de decisões para enfrentá-la (“livro branco”) e
recorda o prazo curto (três meses) em que o plano foi elaborado, com o auxílio
dos economistas Antônio Kandir e Ibrahim Eris.
”Eu acho que estava todo mundo disposto a fazer certo
sacrifício”, argumenta Zélia. “Se tivesse dado certo a gente não estava
conversando sobre isso. Todo mundo acharia que (eu) era a heroína. Infelizmente
não foi isso que aconteceu. Eu fracassei”. Arrependimento, autocrítica?
Vaidosamente não -ainda que complemente: “Eu sinto muito pelas pessoas que
sofreram pessoalmente por isso”.
Dorival Silva estava em plena expansão de sua pequena
empresa de transporte, com dinheiro no banco da venda de um caminhão e de uma
casa para a compra de dois novos veículos, quando foi atingido pelo
congelamento do dinheiro. “Perdi tudo. Isso aí foi um golpe, né”, relembra, de
sua modesta casa interiorana. “Dorival nunca mais foi o mesmo homem”,
complementa sua esposa. “Até hoje não conseguimos superar isso”.
O advogado Josué Reis lembra como o então recém-fundado
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) ficou hiperlotado por
reclamantes indignados em busca de ações para liberar os recursos congelados.
Em artigo comentando o filme na “Folha”, o advogado Alexandre Berthe lamenta
que, “passadas três décadas, há 600 mil processos relacionados ao tema
—suspensos e sem previsão de julgamento— que prorrogam a angústia”.
Autoritário e inconsistente, o Plano Brasil Novo logo fez
água. A queda da inflação foi logo revertida e instaurou-se uma brutal
recessão, dada a desorganização generalizada da produção e do consumo.
Auxiliar de Eris no Banco Central, o economista Gustavo
Loyola sustenta que “esta ideia de que tem uma bala de prata ficou no passado”.
Seu colega Luiz Gonzaga Belluzzo, que foi apresentado ao plano na véspera de
sua implementação, reconhece que “economista não é mágico”. O sociólogo
Brasílio Sallum Junior destaca a “falta de experiência” da equipe econômica de Collor.
Um comentário final de Josué Reis adverte o presente: “Um
país que passou por aquilo é um país que incute medo”. “Confisco” não nos deixa
esquecer.