Por Amir Labaki
Pouco mais de uma semana após a entrega do relatório final da CPI da pandemia, consolidando em mais de mil páginas uma radiografia devastadora das ações e omissões criminosas do presidente Jair Bolsonaro, ministros e empresas parasitas, é mais que oportuna a estreia na 45ª. Mostra Internacional de Cinema em São Paulo de “SARS-Cov-2: O Tempo da Pandemia”, de Eduardo Escorel e Lauro Escorel. O documentário tem estreia em salas neste fim de semana e poderá ser assistido em streaming gratuito às 19hda próxima terça, dia 2, no Itaú Cultural Play.
Tratar-se de uma produção de origem institucional, patrocinada pela Fundação Itaú para a Educação e Cultura e pela iniciativa benemérita do Itaú-Unibanco Todos Pela Saúde, foco do filme, em nada reduz a relevância da realização. Já seria em si um raro e salutar gesto de transparência a apresentação audiovisual de uma prestação de contas dos recursos privados de R$ 1 bilhão aplicados numa ação complementar ao combate público à trágica pandemia.
“SARS-Cov-2” tem a sabedoria de utilizar seus laços de origem como moldura estruturante. Os irmãos Escorel seguiram à risca o conselho do cineasta Alberto Cavalcanti: frente ao desafio de um documentário sobre os correios, faça um filme seguindo a trajetória de uma carta.
A carta no caso são as iniciativas concretas do comitê de especialistas formado em março do ano passado sob a coordenação do médico Paulo Chapchap. Entrevistados entre março e maio deste ano, em São Paulo e Belo Horizonte, nos oferecem depoimentos essenciais para a história oral da pandemia no país. O mesmo vale para as entrevistas com sete profissionais da linha de frente, atuantes em hospitais e numa instituição de permanência de idosos.
O coração do filme é esse mosaico testemunhal, complementado pontualmente por gravações sobretudo em São Paulo e em Manaus e algum material de arquivo, marcadamente fotográfico. A linha narrativa concentra-se no planejamento e implementação de medidas do Todos pela Saúde. Para o quadro geral dos cruéis eventos que se desenvolveram entre nós, recomendo assistir no Globoplay a “Cercados - A Imprensa Contra o Negacionismo na Pandemia” (2020), de Caio Cavechini.
Que fique claro: não se poupa a condução anticientífica e danosa pelo governo Bolsonaro, como explicitado por diversos depoimentos, inclusive nas diretas consequências de um maior número de infectados e de mortes. Mas o objetivo é outro: revelar os atos concretos que auxiliaram a minorar a tragédia e, de olho no futuro, contribuirão para respostas mais ágeis no campo da saúde pública.
Informações valiosas vão se somando com a articulação dos depoimentos. A marca impactante de R 1 bilhão da doação inicial é logo relativizada quando se revela que o orçamento anual do SUS é de R$ 250 bilhões. As ações tiveram abrangência nacional e eram decididas em reuniões diárias às 7h pelos membros do comitê. O front prioritário foi o de enfrentar a escassez de equipamentos de proteção para profissionais de saúde, seja por meio de sua aquisição e distribuição como da direta catalisação de sua produção no país.
Entre as iniciativas, destacam-se o auxílio na distribuição de oxigênio; a encomenda e o envio de mais de 100 mil oxímetros para hospitais; a transferência de profissionais especializados para regiões menos servidas; a atenção para se evitar aqui o dantesco impacto sobre as instituições de moradia de idosos da primeira onda na Itália (o segundo centro pandêmico, após a China); e o apoio à construção de novas fábricas de vacina.
Não se trata, contudo, de um filme árido. O tom sóbrio das entrevistas é temperado pela emergência das decisões e atos, pelo inconformismo frente às desigualdades sociais do país, pela indignação diante de um governo federal irresponsável, e pela emoção de perdas profissionais e privadas.
Os mais impactantes documentários já lançados sobre a corrente pandemia desafiaram corajosamente os riscos sanitários para sua própria produção a fim de acompanhar o combate na linha de frente. Para ficar num exemplo acessível (Globoplay), “76 Dias”, de Hao Wu, acompanha o “lockdown” em Wuhan, China, a cidade onde tudo começou.
“SARS-Cov-2: O Tempo da Pandemia” distingue-se pela pioneira reconstituição dos bastidores de um gabinete de crise especialmente mobilizado para enfrentar a Covid-19. Resguardadas as diferenças entre um retrato institucional e um biográfico, “Fauci”, de John Hoffman e Janet Tobias, aqui comentado no início do mês, talvez seja a produção recente com maiores pontos de contato, ao retratar o duplo embate do epidemiologista norte-americano no enfrentamento das pandemias de AIDS e Covid-19.
Fauci liderava uma agência governamental dos EUA. Todos pela Saúde é um instituto privado. Só nisso já há uma aula sobre o Brasil a não ser esquecida.