Por Amir Labaki
É compreensível como estratégia de
marketing, mas deturpador quanto à dinâmica da relação retratada, a
inversão dos protagonistas no subtítulo brasileiro de “Irmãos de Sangue:
Muhammad Ali e Malcolm X”, o documentário de Marcus A. Clarke lançado
na semana passada pela Netflix. O mais carismático boxeador de todos os
tempos é naturalmente muito mais conhecido do que o líder muçulmano
afro-americano assassinado em 1965, porém é sobretudo a influência de
Malcolm sobre Ali que está em foco, e não o inverso.
Ok, no livro que deu origem ao
filme a ordem é a mesma do título brasileiro, mas em ambos os batismos
para as telas suaviza-se a mais aguda definição presente no título do
volume original, “Blood Brothers: The Fatal Friendship Between Muhammad
Ali & Malcolm X” (Basic Books, 392 págs, 2016), de Randy Roberts e
Johnny Smith. Uma amizade fatal pode soar como “spoiler”, mas é bem do
que se trata, como não deixa dúvida o filme de Clarke.
“Irmãos de Sangue” se distingue
pela apresentação do contexto sociocultural do encontro entre Ali,
quando ainda Cassius Clay (1942-2016), e Malcolm (1925-1965). Para os
cada vez mais raros aficionados por boxe, o filme oferece um nuançado
retrato do primeiro período de carreira do campeão mundial dos
pesos-pesados por quatro vezes, mas tem muito pouco a mostrar de sua
performance nos ringues. É nisso algo pioneiro em documentários, mas uma
abordagem já presente na filmografia ficcional contemporânea, basta ver
“A Grande Luta de Muhammad Ali” (2013), de Stephen Frears, e “Uma Noite
em Miami...” (2020), de Regina King.
Infelizmente por demais reverente à
sua origem teatral, “Uma Noite em Miami...” fabula a celebração
histórica, num hotel ainda segregado na Flórida, da primeira conquista
do título mundial pelo ainda então Clay, derrotando Sonny Liston
(1932-1970) em 25 de fevereiro de 1964. O documentário de Clarke também
relembra a festança como o apogeu de cumplicidade entre o novo campeão e
Malcolm X, um de seus mentores na conversão ao islamismo e ao combate
por direitos iguais para os negros nos EUA.
Apenas dois dias depois do triunfo
sobre Liston, numa cerimônia em Chicago, Cassius Clay era rebatizado
Muhammad Ali pelo polêmico Elijah Muhammad (1897-1975), o líder do grupo
religioso de muçulmanos negros Nação do Islã. O vínculo era um segredo
de polichinelo, pela constante presença do boxeador em reuniões da seita
em mesquitas e salões desde o início dos anos 1960. “No entanto”, como
escreveu David Remnick em “O Rei do Mundo” (Companhia das Letras, 376
págs, 2011), “fora de seu pequeno círculo profissional, a conversão de
Clay foi um choque”.
Fundada em 1930, a seita já
professava uma heterodoxa interpretação do islamismo associada à
ufologia, impondo estrita disciplina militar e patriarcal, em favor do
“separatismo negro”. Em 1952, também Malcolm, na época ainda sob o
sobrenome Little, fora por Elijah recrutado, depois de uma juventude de
delinquência e quatro anos de prisão. “Nenhum dos seguidores de Muhammad
havia demonstrado tanta inteligência e segurança ao pregar”, destacou
Remnick.
Malcolm X logo se tornou o segundo
nome da Nação do Islã e sua liderança mais conhecida e carismática. Se
Elijah conheceu Ali primeiro, Malcolm foi essencial para concretizar sua
conversão. Ironias da história: como Clarke didaticamente demonstra, a
filiação do boxeador aconteceu quase simultaneamente à ruptura entre
seus dois mentores.
Elijah temia o crescimento da
projeção de Malcolm e este defendia, pública e privadamente, uma guinada
política da seita, em favor de um engajamento mais ativo na batalha
pelo fim da segregação racial e pela igualdade de direitos para os
afro-americanos. Em 1964, Malcolm foi afastado da Nação do Islã e Ali
também rompeu relações com ele, mantendo-se fiel a Elijah, seu primeiro
padrinho.
Em 21 de fevereiro de 1965,
Malcolm X foi assassinado ao iniciar um discurso no salão Audubon em
Manhattan. Meses antes, revelara a hipocrisia de Elijah em pregar
retidão moral ao mesmo tempo em que engravidava jovens secretárias em
série.
“Malcolm X e todos mais que
atacarem ou falarem em atacar Elijah Muhammad morrerá”, comentou Ali
numa entrevista para TV recuperada por Clarke. Elijah negou qualquer
envolvimento, completando: “Ele pregava a violência e a violência tirou
sua vida”.
Logo após afastar-se da Nação do
Islã, em 1975, Muhammad Ali retomou contato com a viúva e as filhas de
Malcolm, a quem hospedara em sua casa de Miami nos idos de 1963. Ao
preparar com o pai seu último livro memorialístico (The Soul of A
Butterfly, Simon & Schuster, 2013), confessou Hana Ali a Marcus A.
Clarke, o boxeador classificou entre seus maiores arrependimentos a
ruptura com Malcolm X. Depois de “Irmãos de Sangue”, suas sagas parecem
tragicamente indissociáveis.