Por Amir Labaki
A morte de Jean-Paul Belmondo (1933-2021), no início desta semana, reunificou a coroa dos reis do cinema francês. Belmondo a dividiu por mais de meio século com seu quase contemporâneo Alain Delon, 85, herdeiros ambos do insuperável Jean Gabin (1904-1976).
Belmondo e Delon eram de certa forma complementares. O primeiro era baixo, atlético e carismático; o segundo, alto, misterioso e extraordinariamente belo. Nas telas, Belmondo falava, falava muito -e sorria. Delon é lacônico, silencioso -e observa.
A contrapelo das aparências, foi Delon o autodidata de origem familiar humilde, que aprendeu o ofício diretamente nos sets. Filho de artistas, uma pintora e um escultor, Belmondo foi sempre aluno indisciplinado, mas cursou boas escolas parisienses e se formou no exigente Conservatório Nacional Superior de Arte Dramática, tendo por colegas, “no bando do Conservatório”, intérpretes que também marcaram o cinema francês dos últimos cinquenta anos como Jean Rochefort (O Marido da Cabelereira, 1990), Jean-Pierre Marielle (Todas As Manhãs do Mundo, 1991) e Bruno Cremer (o mais longevo Maigret em telesséries, de 1991 a 2005).
Iniciantes em cinema, Belmondo e Delon se cruzaram curiosamente em 1958 como coadjuvantes de uma comédia policial de Marc Alégret, “Basta Ser Bonita”. O encontro com Luchino Visconti mudaria a vida de Delon, estrela mundial imediata após protagonizar “Rocco e Seus Irmãos” (1960). Foi a explosão da “Nouvelle Vague” que transformou Belmondo de anônimo em mito, iniciando no curta “Charlotte e Seu Namorado” (1958)) a cintilante colaboração da década seguinte com Jean-Luc Godard (Acossado; Uma Mulher É Uma Mulher; O Demônio das Onze Horas).
Belmondo se tornou um campeão de bilheterias a partir sobretudo de seus filmes produzidos na França. Delon, por sua vez, se firmou como o maior astro francês do cinema internacional nos anos 1960 e 70 -como a seu modo Marcello Mastroianni (1924-1996) foi o italiano-, trabalhando com um amplo leque de cineastas principalmente europeus: Michelangelo Antonioni (O Eclipse), Joseph Losey (Cidadão Klein), Valerio Zurlini (A Primeira Noite de Tranquilidade).
Uma boa ideia do contraste entre suas personalidades e personas fílmicas exala das colaborações de ambos com Jean-Pierre Melville (1917-1973). Melville extraiu de Belmondo três desempenhos robustos bastante distintos, como um padre (Leon Morin, O Padre, 1961), um gângster (Técnicas de Um Delator, 1962), e um boxeador (Um Homem De Confiança, 1963), com diretor e ator digladiando-se durante as filmagens. Delon, por seu turno, venera Melville mais do que todos os demais cineastas com que trabalhou, Visconti inclusive, dedicando ao diretor de “O Samurai” (1967) o único filme que dirigiu, o policial “Na Pele de Um Tira” (1981).
No auge dos respectivos estrelatos, no início dos anos 1970, Belmondo e Delon, ou Delon e Belmondo, contracenaram de verdade uma única vez. Em “Borsalino” (1970), de Jacques Deray, interpretam dois pequenos gângsteres que se aliam para dominar os negócios escusos da Marselha dos anos 1930. A química funcionou e quem assistiu Paul Newman e Robert Redford no posterior “Golpe de Mestre” (1973) de George Roy Hill (1921-2002) compreende o tamanho da repercussão mundial da isolada parceria.
A carreira de Belmondo pode ser dividida, grosso modo, em seu período “Nouvelle Vague”, na primeira década de 1960, e, depois disso, em sua popularíssima fase independente. Na primeira, além de ter sido o maior alter-ego nas telas de Godard, colaborou com Claude Chabrol (Quem Matou Leda?, 1959), Claude Sautet (Como Fera Encurralada, 1960) e François Truffaut (A Sereia do Mississipi, 1969), entre outros. De certa forma, o segundo período deslanchou, ou ao menos se definiu, a partir do triunfo comercial de sua aventura brasileira em “O Homem do Rio” (1965), de Philippe De Broca (1933-2004).
Com uma ou outra concessão a produções esteticamente mais ousadas, como “Stavinsky” (1973) de Alain Resnais (1922-2014), Belmondo se tornou o grande fenômeno das bilheterias francesas dos anos 1970 e 1980, de forma algo similar, ainda que com muito maior auto-ironia, ao que na época representavam Burt Reynolds (1936-2018), Charles Bronson (1921-2003) e Clint Eastwood em Hollywood. Recusando dublês e arriscando as próprias acrobacias, como Tom Cruise reedita hoje, Belmondo se divertia rodando comédias policiais ou românticas de qualidade irregular e arrecadação segura (Tira ou Ladrão; O Profissional; Feliz Páscoa).
A onda virou no final dos anos 1980 e Belmondo diminuiu radicalmente o ritmo. Em 2001, um AVC acabou de tirá-lo das telas, com exceção de uma descartável refilmagem do clássico neorrealista “Umberto D” (1952) em “Um Homem e Seu Cão” (2008), de Francis Huster. Uma Palma de Ouro honorária, no Festival de Cannes de 2011, soou como reconhecimento por demais tardio. Delon, em descaso ainda pior, a receberia apenas em 2019. Gabin, nunca.
Jean-Paul Belmondo reinou numa época em que arte cinematográfica e cinema popular tinham zonas comuns; em que havia intérpretes que assinavam seus filmes mais do que a maioria dos diretores; em que se contava no calendário quanto tempo mais demoraria o reencontro com um rosto, um corpo, uma voz, exclusivamente no templo das luzes bruxuleantes. Sim, Billy Wilder acertou na mosca: foram os filmes que encolheram.