Por Amir Labaki
Repleto
de personagens que ainda frequentam nossa galeria diária de notícias, o
documentário “O Fator Humano” (2019) do israelense Dror Moreh parece
retratar uma era tão distante como a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Disponível no Globoplay, trata-se de uma austera dissecção de mais de
três décadas de envolvimento dos EUA na busca de uma solução pacífica
para o conflito entre israelenses, árabes e palestinos no Oriente Médio.
Parece pesado, mas voa como um thriller, como se séries como “Homeland”
(Globoplay) e “Fauda” (Netflix) abrissem episódios reflexivos.
Não
é por acaso a origem israelense das duas séries ficcionais citadas. “O
Fator Humano” se diferencia por tratar explicitamente da perspectiva
parcial da imensa maioria de seus entrevistados. São judeu-americanos
cinco dos seis negociadores oficiais dos EUA, na tentativa de firmar
acordos de paz entre lideranças israelenses, palestinas e árabes,
entrevistados por Moreh. A exceção é Gamal Helal, diplomata
egípcio-americano que trabalhou de meados dos anos 1980 até 2009 no
Departamento de Estado, o equivalente dos EUA a nosso Ministério das
Relações Estrangeiras.
Vários
depoentes descartam o mito da neutralidade dos negociadores americanos e
alguns, como Aaron David Miller, se arrependem mesmo de terem “vezes
demais” trabalhado como “advogados de Israel”. Moreh aponta o elefante
na sala, mas não deixa dúvidas do ativo engajamento de todos na busca de
uma solução negociada que compatibilizasse os interesses historicamente
conflitantes, pacificasse a região e alcançasse a solução de dois
Estados soberanos lado a lado, Israel e Palestina.
“O
Fator Humano” recorda como esta utopia esteve prestes a vingar e assume
ao fim que nunca esteve tão longe quanto hoje de apresentar-se no
horizonte. Catalisada inicialmente pela habilidade de James Baker, o
secretario de Estado entre 1989 e 1992 do presidente republicano George
Bush (1924-2018), a janela de esperança quase coincide com o período
(1993-2001) dos dois mandatos do democrata Bill Clinton na Casa Branca. O
crédito, porém, cabe menos à liderança de Clinton do que à ousadia de
dois líderes que superaram barreiras firmemente enraizadas em seus
respectivos campos, em busca de um compromisso pacífico: o
primeiro-ministro israelense Yitzak Rabin (1922-1995) e o líder da
Autoridade Palestina e da OLP Yasser Arafat (1929-2004).
A
inteligente edição do abundante material de arquivo do período revela a
radical mudança da dinâmica interpessoal dos encontros entre Rabin e
Arafat, da desconfiança à cumplicidade. O mosaico de imagens e
depoimentos colore de detalhes a tensa negociação de bastidores que
viabilizou o pioneiro aperto de mãos entre ambos nos jardins da Casa
Branca, com Clinton na retaguarda, em celebração da assinatura dos
acordos de Oslo em 1993.
Surgia uma
luz no fim do túnel, como simbolizado pela atribuição do prêmio Nobel de
Paz do ano seguinte a Rabin e seu chanceler, Shimon Peres (1923-2016),
do lado israelense, e a Arafat, do palestino. Ela não duraria muito,
como comprovou o assassinato de Rabin em Tel-Aviv pelo radical
direitista israelense Yigar Amir em novembro de 1995. Os registros de um
comício anti-Rabin pouco antes de sua execução exibem o inflamado
discurso de seu nêmesis: o futuro primeiro-ministro (1996-1999 e
2009-2021) Benjamim Netanyahu.
Mantendo
o foco no apogeu das negociações, “O Fator Humano” sobrevoa apenas o
primeiro governo Netanyahu, ainda incapaz de enterrar o processo de paz e
a solução de dois Estados, no que se empenhou com trágico sucesso em
seu longo segundo mandato. A ascensão a primeiro-ministro de Ehud Barak
em 1999 reacendeu as expectativas de um acordo mais amplo e duradouro
ainda no ocaso da era Clinton, com os bastidores da frustrante cúpula de
paz de Camp David em 2000 estabelecendo o tom sombrio do epílogo de “O
Fator Humano”.
Em sua resenha ao
filme na revista Variety, Jay Weissberg parece-me se equivocar em duas
críticas bem-intencionadas. Primeira: os palestinos não são retratados
como “a parte intratável”. Segunda: Moreh não recicla o “Orientalismo”,
como cacoete colonialista definido por Edward Said, ao fixar-se nos
negociadores americanos, até pelo fato de problematizar explicitamente a
origem e a postura de seus entrevistados.
Cobrar-lhe
por não ouvir os negociadores dos outros lados é exigir do
documentarista uma postura jornalística. Seria o mesmo que condená-lo
por restringir-se aos chefes do serviço de segurança de Israel (o Shin
Bet) nas entrevistas de seu igualmente impactante filme anterior, “Os
Guardiões” (The Gatekeepers, 2012), indicado merecidamente ao Oscar de
documentário. Em ambos os filmes, Dror Moreh captura o cotidiano e o
pessoal no tecido mesmo da História. É raro, é belo -e não é pouco.