Por Amir Labaki
O primeiro sinal de que algo muito errado estava acontecendo mais uma vez no Afeganistão me chegou por meio do Twitter de uma cineasta. Ainda antes da queda de Cabul, na madrugada de sábado (14) para domingo (15), a diretora da estatal Cinema Afegão (similar a nossa extinta Embrafilme), Sahraa Karimi, soava o alerta quanto à rápida retomada do poder pelo Talibã, o grupo fundamentalista islâmico dele afastado desde a invasão americana em 2001, após o ataque terrorista de 11 de setembro. “Precisamos de sua voz”, clamava a cineasta aos colegas da comunidade cinematográfica internacional. Era tarde demais.
Vinte anos e US$ 2,26 trilhões do contribuinte americano depois do início da ocupação, o presidente democrata Joe Biden efetivou uma atabalhoada retirada das tropas dos EUA no país, seguindo com pequeno atraso o acordo firmado entre seu antecessor, Donald J. Trump, e o Talibã. Há meses Biden prometera uma saída organizada e pacífica das tropas americanas da mais longa guerra da história do país, assim como dos afegãos que as auxiliaram “in loco”.
O presidente americano garantira ainda que não haveria cenas de pessoas sendo resgatadas dos telhados da embaixada, numa referência elíptica às patéticas imagens da trágica queda de Saigon em 1975, minuciosamente reexaminadas em 2004 pelo documentário “Os Últimos Dias no Vietnã, de Rory Kennedy. Não demorarão filmes similares sobre a ainda mais dramática partida de Cabul, com os dilacerantes registros de afegãos despencando em pleno ar de um avião militar americano.
Como temia Karimi, que conseguiu sair clandestinamente do país, é a volta do “regime das trevas” reinante entre 1996 e 2001. A pantomima inicial de um retorno menos radical durou pouco. Talibã moderado é um oximoro. A lei é a interpretação mais opressiva da “sharia”, com a perseguição a “infiéis” e opositores, banimento das mulheres da vida pública e obscurantismo cultural.
O pedido de socorro e a emigração emergencial da diretora afegã me lembraram como dois documentários recentes exibidos pelo É Tudo Verdade iluminam as razões do temor frente a volta ao poder do grupo fundamentalista islâmico. Quando Karimi escreve que “eu e outros cineastas podemos estar na próxima lista de ataques deles”, imediatamente voltaram à mente as imagens de “O Rolo Proibido” (2019) de Ariel Nasr. O filme recupera como valentes cineastas e arquivistas de filmes salvaram, atrás de paredes falsas na sede da cinemateca nacional, o patrimônio fílmico afegão condenado ao desaparecimento pela primeira administração do Talibã.
Por sua vez, ainda maior urgência ganhou “Fuga”, o documentário animado do cineasta dinamarquês Jonas Poher Rasmussen, exibido na abertura do festival deste ano e forte concorrente ao próximo Oscar. Rasmussen refaz a história de um exilado afegão, seu colega de classe, que enfrentou uma dramática odisseia para exilar-se com sua família após a bárbara ascensão ao poder do Talibã nos anos 90. Histórias como a de Amin Nawabi, o pseudônimo do protagonista de “Fuga”, não representam mais um doloroso passado a recontar: um quarto de século depois, ocupam diariamente as telas nos noticiários de TV mundo afora.
Enquanto “Fuga” e “O Rolo Proibido” aguardam distribuição comercial por aqui, vale conferir como dois filmes de ficção também nos ajudam a compreender a arapuca para impérios representada pelo Afeganistão há ao menos dois séculos. O último longa-metragem dirigido pelo grande Mike Nichols (1931-2014), “Jogos do Poder” (2007), adaptou um livro de George Crile sobre o empenho de um deputado democrata do Texas, o “bon vivant” Charles Wilson (Tom Hanks), para financiar o armamento dos “mujahadins” em luta contra a ocupação soviética do Afeganistão (1979-1989). Ironias da história, diante do absoluto desconhecimento da complexa realidade local pelos americanos, parte do arsenal distribuído serviu precisamente para a ascensão militar do talibã após a humilhante retirada da URSS.
Ecos mais profundos se encontram num dos melhores filmes de John Huston (1906-1987). Adaptado de um conto de Rudyard Kipling (1865-1936), “O Homem Que Queria Ser Rei” (1975) funciona como uma cínica fábula passada na segunda metade do século 19 no então Cafiristão (hoje Nurdistão) no nordeste afegão. Em busca do ouro, para lá bandeiam dois soldados britânicos (Michael Caine e Sean Connery) da tropa colonial na Índia.
Confundido com um deus, a um passo de ser coroado, um deles assevera para a tropa cafiri: “Quanto tivermos terminado com vocês, estarão prontos para levantar-se e massacrar seus inimigos como homens civilizados”. Um século e meio depois, a missão americana no Afeganistão era resumida de forma não muito distinta por seus oficiais, segundo o colunista Thomas L. Friedman do The New York Times: “Nós estamos lá para treinar o exército afegão para lutar por seu próprio governo”. Aplicando ao Afeganistão a sacada sobre o Brasil de Luiz Fernando Veríssimo, também lá são as farsas que se repetem como história.