Por Amir Labaki
Dois relançamentos elevam a novo patamar a revalorização recente do cineasta francês Jean-Pierre Melville (1917-1973). A versão restaurada de “O Exército das Sombras” (1969), em nova edição em DVD pela Versátil (R$ 34,90), o confirma como o filme mais ambicioso, autobiográfico e pessoal do cineasta. Esgotado há muito, depois de publicado em 1973 e reeditado em 1996, “Le Cinéma Selon Jean-Pierre Melville – Entretien avec Rui Nogueira” (Capricci, 224 págs, 22 euros) complementa com três textos inéditos o volume original, fechando finalmente o círculo sobre a vida e obra do judeu alsaciano nascido Jean-Pierre Grumbach.
Ex-assistente de Henri Langlois (1914-1977) na Cinemateca Francesa, o moçambicano Nogueira, hoje aos 84 anos, transformou o fascínio por Melville num livro de entrevistas à moda do imbatível “Hitchcock-Truffaut” (1966). O crítico e o cineasta conheceram-se durante uma reportagem sobre a estreia parisiense de nada menos que “O Samurai” em 1967. Uma paixão comum catalisou a ligação: o cinema americano clássico.
Logo na primeira pergunta, Nogueira explicita tomar por modelo o então recente volume em que o ex-crítico tornado diretor de frente da “Nouvelle Vague” (Os Incompreendidos, 1963) dedicara para radiografar minuciosamente a evolução da obra de um cineasta maior ainda estigmatizado apenas como diretor de filmes comerciais. Jamais editado no Brasil, “Le Cinéma Selon Jean-Pierre Melville” mantém a organização cronológica de “Hitchcock-Truffaut”, mas se estrutura em capítulos específicos para cada filme, à exceção de uma breve conversa biográfica introdutória sobre a formação do Grumbach pré-Melville. É quando o cineasta explica assim a adoção como pseudônimo do sobrenome do autor de “Moby Dick”: “Por pura admiração e por desejo de identificação a um autor, a um criador que me tocava mais que qualquer outro”.
Antes que um pseudônimo artístico, “Jean-Pierre Melville” foi um nome de guerra. Grumbach lutou no exército francês derrotado pelas tropas nazistas em 1940, se engajando no exílio nas fileiras das Forças Francesas Livres lideradas desde Londres pelo general Charles De Gaulle (1890-1970). Combatendo no exterior pela libertação da França ocupada pelos alemães e partida frente ao governo colaboracionista do marechal Philippe Pétain (1856-1951), o futuro cineasta experimentou os horrores do front e o companheirismo das trincheiras. “A época da guerra”, diz ele a Nogueira, “foi abominável, horrível e maravilhosa!”. Três de seus treze longas-metragens tratam do período: seu longa de estreia, “O Silêncio do Mar” (1949); “Léon Morin – O Padre” (1961), estrelado por Jean-Paul Belmondo e Emmanuelle Riva (1927-2017); e “O Exército das Sombras”.
Essa trilogia da guerra forma um continente à parte na obra de Melville. Sua fama construiu-se a partir de filmes policiais inspirados pelo “noir” americano, girando em torno de pequenos gângsteres atrás do grande golpe ou de serviços bem cumpridos: “Bob, O Jogador” (1955), “Técnicas de Um Delator” (1962), “O Samurai”, “O Círculo Vermelho” (1970), todos disponíveis em DVD no Brasil.
Originados todos de adaptações literárias, os filmes do tríptico se passam na França ocupada e se distinguem marcadamente em escopo e estilo. “O Silêncio do Mar” é um filme de câmara sobre uma família da França profunda forçada a conviver com um oficial alemão. “Léon Morin” contrapõe, por sua vez, duas das maiores estrelas do cinema francês da época numa história de amor impossível sob o terror da ocupação e da perseguição aos judeus.
“O Exército das Sombras” aplica a mais vultuosa produção da carreira sempre independente e econômica de Melville para acompanhar um par de anos da ação clandestina de um único grupo da Resistência francesa, formado entre outros por Lino Ventura (1919-1987), Simone Signoret (1921-1985) e Paul Meurisse (1912-1979). “O livro escrito por (Joseph) Kessel, à quente, em 1943, é forçosamente diferente do filme rodado por mim, a frio, em 1969”, reconheceu o cineasta a Nogueira. “A partir de um relato sublime, de um documentário maravilhoso sobre a Resistência, fiz um devaneio retrospectivo, uma peregrinação nostálgica a uma época que marcou profundamente minha geração”.
Rodado em tons pálidos e ritmo compassado, “O Exército das Sombras” traduz como em nenhum outro filme a devoção total e a absoluta tensão dos pioneiros heróis anônimos da batalha pela reconquista da independência e da liberdade frente a crueldade administrada da França ocupada. Que François Truffaut, em “O Último Metrô” (1980), e Quentin Tarantino, em “Bastardos Inglórios” (2009), tenham nele se inspirado ajuda a explicar porque a previsão de Melville falhou e o cinema continue vivo e belo para além de 2020.