Por Amir Labaki
“O passado não está nunca morto. Não é nem mesmo passado”. A fórmula do romancista William Faulkner (1897-1962) foi lembrada por Thierry Frémaux no encerramento da bela mesa em homenagem póstuma ao cineasta Bertrand Tavernier (1941-2021) que fez parte da programação da 35ª edição do festival Il Cinema Ritrovato, realizado entre o fim de julho e o início deste mês em Bolonha, Itália. O diretor de Cannes emprestou a citação de Faulkner, cara a Tavernier, para reafirmar sua crença na vitalidade do cinema pós-pandemia.
É evidente que se encheu de dramático simbolismo o fato de o grande encontro anual em torno do patrimônio cinematográfico mundial ter se encerrado à trágica luz do incêndio -mais que previsto, provável- que atingiu um dos depósitos da Cinemateca Brasileira em São Paulo, no último dia 29. Na apresentação do programa de 2021 de Il Cinema Ritrovato, neste mesmo espaço, manifestei o inconformismo de ver ausente do festival italiano nossa cinemateca, devido à paralisia de seus trabalhos desde o ano passado por atos e omissões do governo federal.
Se as autoridades de turno não entendem por que são responsáveis, são responsáveis também e não só porque não entendem. Cinematecas são arquivos sofisticados e especialmente vulneráveis, a serem confiados a profissionais especializados e gestores culturais experientes. Ninguém com este perfil dá expediente na cadeia de comando governamental na área e no esvaziado cotidiano da instituição desde o ano passado. Deu no que deu. Sem qualquer surpresa.
Um rápido sobrevoo da variada programação que pude assistir em streaming do 35º Il Cinema Ritrovato exemplifica alguns tipos de atividades inviabilizadas na Cinemateca pela negligência federal. A partir exclusivamente de cenas de filmes preservados no Eye Filmmuseum, a cinemateca holandesa, Peet Gelderblom realizou uma ficção de arquivo intitulada “When Forever Dies” (2020), em que um casal mítico se vê embrenhado numa guerra dos sexos a partir do momento em que firmam um pacto com o diabo.
Utilizando trechos de filmes rodados entre 1878 (o pioneiro Eadward Muybridge) e 2002 (a experimental Martha Colburn), de clássicos do cinema mudo como “Fausto” (1926) de Murnau e “Um Cão Andaluz” (1929) de Buñuel a animações com Betty Boop e filmes publicitários, Gelderblom forja uma original narrativa de pouco mais de 100 minutos que dialoga com obras similares de trabalho com “found footage” de contemporâneos como o americano Bill Morrison e o brasileiro Carlos Adriano.
Finalmente restaurado, “Les Oliviers de La Justice” (As Oliveiras da Justiça, 1961), de James Blue (1930-1980), devolve à circulação a única produção ficcional francesa rodada na Argélia perto do fim de sua guerra de independência (1954-1962). Girando em torno de um filho emigrado para Paris que retorna à conflitada Argel para despedir-se do pai agonizante, o filme me surpreendeu com algo do tom melancólico de “Memórias do Subdesenvolvimento” (1968), de Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996), e dialoga diretamente com o documentário “O Marinheiro das Montanhas”, que Karim Aïnouz acaba de lançar em Cannes.
Séries policiais, em documentário ou ficcionais, podem ser uma das grandes atrações do streaming, mas os quatro episódios restaurados de “Belphégor” (1926), de Henri Descontaines (1876-1931), que circulou aqui no ano seguinte sob o título “O Fantasma do Louvre”, demonstra como a produção francesa dominava largamente o popular formato já na última década do cinema mudo. Bastam estes poucos exemplos para comprovar que o passado de fato nem mesmo é passado.
Até há pouco, nada disso, e muito mais, era estranho ao cotidiano da Cinemateca Brasileira, com distinção internacional. A barbárie a tomou, estrangulou, esvaziou e abandonou. Afinal o que é deixar queimar um andar de fitas antigas e papel velho?
Neste sábado (7), uma nova manifestação na sede da instituição protestará contra um ano de sua desertificação forçada pela incúria federal. Sem uma radical correção de rota, um ano e meio é tempo o bastante para a previsível ignição de um sexto incêndio na Cinemateca (1957, 1969, 1982, 2016, 2021). Queime, Brasil, queime.