Por Amir Labaki
O documentário “Roadrunner: A Film About Anthony Bourdain”, de Morgan Neville (A Um Passo do Estrelato, 2013), tem pautado manchetes desde que estreou em meados do mês passado nos cinemas dos EUA. As positivas o destacam como o recordista não-ficcional das bilheterias pós-pandemia ao superar a marca de US$ 2,5 milhões arrecadados. As negativas destacam uma polêmica ética, pelo uso de um programa de inteligência artificial para recriar a voz de Bourdain em três falas no filme.
Numa delas, ouve-se, por meio da voz recriada em computador, o carismático chef e apresentador de TV, que se matou em 2018 no auge da carreira, como que lendo alto um e-mail enviado a um amigo. “E minha vida está uma merda agora. Você é bem sucedido, e eu sou bem sucedido, e me pergunto: Você está feliz?”.
Foi o próprio diretor que reconheceu o recurso quando indagado pela repórter Helen Rosner do semanário The New Yorker sobre a origem daquela inusual fala de alguém lendo a própria mensagem. “Havia três citações para as quais eu queria a voz dele e não havia gravação”, contou Neville. “Criei um modelo de inteligência artificial da voz dele”. No total, o trio de falas assim criadas, a partir de cerca de doze horas de gravações da voz de Bourdain, dura 45 segundos em “Roadrunner”, ainda sem estreia prevista no Brasil.
“Se você assiste o filme, além desta linha que você mencionou, você provavelmente não sabe que outras linhas foram ditas por inteligência artificial e você não vai saber”, complementou o cineasta para Rosner. “Nós podemos ter um painel sobre a ética no documentário mais tarde”.
O pavio estava aceso e o debate não demorou. Na mesma semana em que saiu o primeiro artigo, a própria Rosner publicou no site da The New Yorker uma reportagem ouvindo dois especialistas em questões éticas no campo audiovisual. Seu título, “The Ethics of a Deepfake Anthony Bourdain Voice”, soa mais condenatório do que os posicionamentos no texto.
Diretor da Witness, uma empresa sem fins lucrativos que analisa “aplicações éticas de vídeo e tecnologia”, Sam Gregory baixou a bola de saída, dizendo que, “em certo sentido, este é um uso muito pequeno de uma tecnologia de mídia sintética”. Ele reconhece que o caso levanta duas questões em duas esferas, a do consentimento e a da transparência, mas conclui que talvez seja a novidade do recurso que provoque agora tanto barulho.
Não muito distinto é o veredicto de Karen Hao, especialista em inteligência artificial da MIT Technology Review. “Um aspecto particularmente perturbador do clone da voz Bourdain, especulou Hao, pode ser sua hibridização de realidade e irrealidade”, escreve Rosner. Mas, citando o potencial criativo de efeitos nesta área, Hao argumenta em favor de dar a Neville “uma folga”: “Eu pessoalmente estaria inclinada a perdoá-lo por cruzar uma fronteira que não existia anteriormente”.
Nem todos contemporizaram como Gregory e Hao. O site de entretenimento Deadline colheu duas reações muito mais críticas em reportagem de Matthew Carey. O cineasta canadense Adam Benzine, indicado ao Oscar pelo curta documental “Claude Lanzmann – Espectros da Shoah” (2015), disse achar o comentário postergando o debate ético “tão problemático quanto o uso da tecnologia” e que a declaração “sugere que ele (Neville) sabia que estava em território perigoso”.
Palestrante sobre ética no documentário, Alan Barker argumentou: ““Há um contrato social não escrito de que os documentários são compostos de realidades, não de artifícios. (...) Cada uma dessas violações do contrato social pode ser ignorada, mas coletivamente minam o conceito e a credibilidade do documentário”.
Neville não tem dado entrevistas desde o início da polêmica, mas soltou uma nota por seu assessor de imprensa em que afirma ter contado com o consentimento dos herdeiros e do agente literário de Bourdain e que “foi uma técnica moderna de narrativa que usei em uns poucos lugares onde achei que era importante dar vida às palavras de Tony”.
O caso “Roadrunner” me lembrou um artigo do produtor de documentários Taylor Downing sobre ética e efeitos especiais em “The Documentary Film Book” (BFI, 2013), editado por Brian Winston. Downing recorda como um documentarista canadense lhe contou ter encontrado, classificadas numa TV como material de arquivo sobre as batalhas navais da Segunda Guerra, às mesmas imagens que o diretor havia encomendado a um especialista em efeitos especiais para cobrir lacunas numa produção documental para a mesma emissora.
Estão longe de consensuais os limites e as regras para a aplicação de tecnologias de ponta de imagem e som na produção de documentários. Mas é certo que bastaria a Neville ter identificado com legendas as falas produzidas por inteligência artificial para, ao menos e a um só tempo, respeitar a memória de Bourdain e cumprir o dever de transparência para com o público. Além de evitar potenciais equívocos futuros como o narrado por Downing.