Por Amir Labaki
Mal se encerra o Festival de Cannes neste sábado (17), já na terça (20) tem início a 35ª edição de Il Cinema Ritrovato (O Cinema Reencontrado), a principal mostra anual do patrimônio cinematográfico mundial, organizada pela Cinemateca de Bolonha com clássicos restaurados, maravilhas recém-redescobertas, documentários sobre cinema, aulas magnas de grandes cineastas e mesas-redondas sobre o estado das coisas planetário nas técnicas de recuperação de filmes. Com a arrastada e perigosa paralisia institucional determinada pelo governo federal à Cinemateca Brasileira desde o ano passado, infelizmente o trabalho do principal arquivo de filmes da América do Sul estará mais uma vez ausente, depois de já ter sido, na década passada, referência de ponta mesmo lá quanto à tecnologia do restauro cinematográfico.
O Brasil faz “forfait”, mas você poderá conferir, do conforto de sua poltrona, uma seleção em streaming (50 euros) de destaques da nababesca programação deste ano. Melhor: enquanto o espectador do festival nas salas italianas terá apenas uma semana (de 20 a 27 próximo) para se esbaldar entre os 426 filmes exibidos, nós, na plateia on-line, poderemos desfrutar por uma semana extra, até 3 de agosto, uma agenda diária com destaques das principais mostras, entrevistas e discussões. A programação em streaming será anunciada apenas no início da próxima semana.
As projeções noturnas no cinema instalado na Piazza Maggiore de Bolonha dão uma ideia da diversidade do programa. Vão se suceder, entre outros, a nova cópia do neorrealista “O Moinho do Pó” (1948) de Alberto Lattuada (1914-2005), na abertura; “Cidade dos Sonhos” de David Lynch (20 anos já!); o francês “Bas-Fonds” (1936), adaptado de Gorki por Jean Renoir (1894-1979); cine-concertos com o clássico mudo “Erotikon” (1920), de Mauritz Stiller (1883-1928), e “O Vampiro” (1932), o segundo filme sonoro de Carl T. Dreyer (1889-1968); e, na sessão de encerramento, a cópia também restaurada do épico “América – O Sonho de Chegar” (1994), de Gianni Amelio.
São oito os ciclos especiais desta 35ª edição. Dois são dedicados a atores: o italiano Aldo Fabrizi (1905-1990), imortalizado como o padre antifascista de “Roma, Cidade Aberta” (1945) de Rossellini, e a austríaca Romy Schneider (1938-1982), revelada ao mundo no final dos anos 1950 pelos filmes da série Sissy e intérprete versátil de obras de Orson Welles (O Processo, 1962) a Jacques Deray (A Piscina, 1969).
Com curadoria do crítico e diretor Ehsan Khoshbakht, jurado do É Tudo Verdade deste ano, uma mostra reavalia a obra de um dos mais poderosos diretores da Hollywood da era dos estúdios, George Stevens (1904-1975), com ênfase na diversidade de gêneros notada no calor da hora pelo brasileiro Moniz Vianna (1924-2009) em sua filmografia, de comédias (A Mulher do Dia, 1942) a musicais (Ritmo Louco, 1937), de dramas (Um Lugar ao Sol, 1951) a faroestes (Os Brutos Também Amam, 1953). Ainda de Hollywood, na esteira do traiçoeiro “Mank” (2020) de David Fincher, é apesar de tudo mais que oportuna a revisita aos principais filmes escritos (Estratégia de Mulher, 1934) ou produzidos (Million Dollar Legs, 1932, com W. C Fields) por Herman J. Mankiewicz (1897-1953) para além da oscarizada contribuição a “Cidadão Kane” (1942).
Wolfgang Staudte (1906-1984) escreveu seu nome na história do cinema alemão ao dirigir o primeiro filme após a derrota nazista, “Os Assassinos Estão Entre Nós” (1946). Quase desconhecido fora da Alemanha, um ciclo inédito permite investigar uma das obras mais renomadas do país entre o pós-guerra e a emergência do novo cinema alemão. Outra mostra apresenta uma espécie de equivalente indiano aos “cinemas novos” dos anos 1960: o “Cinema Paralelo” lançado em 1968 por cineastas como Mniral Sen (1923-2018) e Mani Kaul (1924-2011).
Talvez nenhum ciclo especial espelhe melhor o espírito de “Il Cinema Ritrovato” do que a pioneira seleção de clássicos europeus da Coleção Tomijiro Komiya (1897-1975), formada por um cinéfilo dono de restaurante e hoje parte do Museu Nacional de Cinema de Tóquio. E nenhum está mais sintonizado com o espírito dos tempos do que a seleção de primeiros filmes de dez diretoras, da cubana Sara Gómez (De certa maneira, 1977) à poloneza Wanda Jakubowska (A Última Etapa, 1948).
Tudo isso sem falar nos documentários. Há de uma retrospectiva da pioneira escola observacionista japonesa das Produções Iwanami, dos anos 1950, a novos retratos de atores como Anthony Hopkins e Louis de Funès (1914-1983) e diretores como Michael Cimino (1939-2016). Assim, se eu demorar a responder mensagens nestas duas semanas, perdoe-me pela ausência do atual inferno brasileiro para uma visita virtual ao paraíso da cinefilia.