Por Amir Labaki
Com o documentário “The Story of Looking” (A História do Olhar), lançado no sábado passado no encerramento do Festival de Documentários de Sheffield, no Reino Unido, Mark Cousins demonstra mais uma vez como foi certeira a Academia Europeia de Cinema ao elegê-lo no ano passado para receber seu primeiro prêmio por Inovação Narrativa. Seu novo filme se inspira em seu belo livro homônimo (Canongate Books, 432 págs, US$ 30, 2017) ainda inédito no Brasil, mas dele se diferencia ao introjetar uma dimensão autobiográfica.
O livro é uma análise da evolução histórica e estética do olhar humano. A primeira metade do ensaio expõe a expansão dos modos de ver do nascimento ao envelhecimento, com a segunda debatendo o desenvolvimento da visão sob a perspectiva histórica, do século 17 aos nossos dias.
Por sua vez, o documentário segue de maneira geral a estrutura daquela primeira parte, mas acrescenta à dimensão ensaística um eixo autobiográfico, parte memória, parte diário. Um drama pessoal, a necessidade da realização de uma cirurgia de catarata em seu olho esquerdo, reenquadra o exercício de crítica.
“The Story of Looking” combina o registro histórico de séries como “Uma História do Cinema: Uma Odisséia” (2011) e “Woman Make Film: Um Novo Road Movie Através do Cinema” (2018) à narrativa sob a forma de caderno de notas audiovisuais de um filme como “What Is This Film Called Love?” (o que é este filme chamado amor?, de 2012). É como se fossem embaralhados “Uma Viagem Pessoal pelo Cinema Americano” (1995), de Martin Scorsese, “Sem Sol” (1983), de Chris Marker, e “As Praias de Agnès” (2008), de Agnès Varda. De Scorsese, uma narrativa histórica a partir de uma perspectiva individual. De Marker, a reflexividade filosófica desenvolvida a partir da fragmentação narrativa. De Varda, uma autobiografia a partir do próprio acervo autoral de fotos e filmes.
A ênfase auto-reflexiva do documentário torna ainda mais central uma citação do pintor pós-impressionista Paul Cézanne (1839-1906) destacada logo na introdução do livro. Na tradução livre de Cousins, Cézanne sustenta que “a experiência ótica cresce conosco”. “Acho que ele está dizendo”, argumenta o cineasta, “que o ser humano desenvolve uma vida visual”.
É este desenvolvimento que Cousins disseca, mesclando a análise histórica e crítica e o depoimento pessoal, temeroso do impacto sobre sua acuidade visual da cirurgia oftalmológica agendada. Partindo do olhar inicialmente desfocado dos bebês, que sua metralhadora erudita exemplifica com o “sfumato” de Leonardo Da Vinci e uma cena de “Quando Duas Mulheres Pecam” (1966) de Ingmar Bergman, o filme acompanha a expansão da visão para o movimento, os olhos dos outros, as cores, a luz, o corpo próprio e dos outros. Cousins as ilustra recorrendo a um vasto arsenal pictórico e cinematográfico, de Gustave Courbet e Albrecht Dürer a Van Gogh e Frida Kahlo, de Zhang Yimou e Andrei Tarkovsky a Billy Wilder e Alfred Hitchcock.
Se muito desse acervo se encontra também no livro, complementa-se no filme com fotos e filmagens de autoria do próprio Cousins. São registros de toda uma vida, vários reconhecíveis em suas produções anteriores, e gravações inéditas, inicialmente colhidas em falas para a câmera a partir de sua cama, num quarto escuro de seu apartamento em Edimburgo, Escócia, às vésperas da operação, em agosto passado. Nunca foi maior em sua obra esta dimensão performática, à moda da Varda madura e do israelense Avi Mograbi (Agosto, 2002), incluindo na meia hora final até a gravação da própria cirurgia.
Em seu epílogo, dois enquadramentos similares de Ingrid Bergman (1915-1982), separados por 36 anos, cronologicamente invertidos, primeiro em “Sonata de Outono” (1978) e depois de “Casablanca” (1942), pautam a argumentação de que “o olhar tardio é comparativo”. O que pensaria a Ingrid aos 63 anos daquela imagem dela aos 27, pergunta Cousins. “Ela veria o que mudou”, é sua resposta, mais bem desenvolvida, no livro. “O que ganhou e o que perdeu. Ela veria 36 anos de olhar”.