Por Amir Labaki
O adiamento das estreias em cinema devido à pandemia acabou tornando quase simultâneos os lançamentos, ainda que da forma precária ditada pelas tristes circunstâncias, dos longas-metragens vencedores da competição brasileira do É Tudo Verdade 2019 e 2020. Vitorioso no ano passado, “Libelu – Abaixo A Ditadura”, de Diógenes Muniz, chegou primeiro às telas e está também disponível para aluguel em plataformas digitais. Já “Cine Marrocos”, de Ricardo Calil, premiado há dois anos tanto aqui quanto no tradicional DOK Leipzig, estreou ontem nos cinemas.
Curiosamente, Calil e Muniz são hoje colegas da equipe de criação do programa de entrevistas Conversa com Bial. Ambos também transitaram do jornalismo para o documentário, com passagens mais recentes pela Folha de S. Paulo, o primeiro na crítica de cinema, o segundo na reportagem de entretenimento.
Calil venceu o festival com seu primeiro filme solo, mas já havia dele participado com seus dois primeiros documentários, realizados em parceria com Renato Terra. “Uma Noite em 67”, sobre o mais marcante dos festivais de música brasileira, abriu o É Tudo Verdade em 2010. Já “Eu Sou Carlos Imperial”, sobre o folclórico e inventivo compositor, cineasta e produtor cultural carioca, concorreu na edição de 2015. “Libelu”, por sua vez, é o documentário de estreia de Muniz.
“Cine Marrocos” é formalmente bastante distinto dos demais títulos da filmografia de Calil. Nos dois anos seguintes à premiação, ele voltou à tabelinha com Terra para realizar “Narciso em Férias” (2020), sobre a prisão em 1968 de Caetano Veloso pela ditadura militar (1954-1985) e a partida para o exílio no ano seguinte, e venceu mais uma vez o É Tudo Verdade em abril passado, agora em parceria com Armando Antenore, com “Os Arrependidos”, no qual recuperam o drama dos militantes da luta armada que, no início dos anos 1970, renegaram publicamente aquela opção, por mudança de ideia ou sob violenta coação, reforçando a maquina publicitária do regime autoritário.
Como costuma afirmar Calil, a forma do documentário nasce a partir das exigências de seu objeto, e ele assim o demonstrou sobretudo em “Cine Marrocos”. O desafio era registrar a ocupação pelo Movimento Dos Sem-Teto do Sacomã de um edifício com forte simbolismo histórico-cultural no antigo centro de São Paulo: o outrora majestoso Cine Marrocos do título, fundado em 1951 e desativado desde 1994.
A grande sacada de Calil foi buscar um dispositivo fílmico que fosse além do registro do cotidiano da ocupação, no estilo do cinema direto, ou da edição de entrevistas com alguns de seus ocupantes, muito oriundos de outros países da América Latina e da África. A chave foi organizar, com cerca de vinte deles, um workshop teatral em que recriavam cenas de filmes exibidos durante o I Festival Internacional de Cinema do Brasil, sediado pelo Marrocos em 1954.
O registro fílmico desse jogo ficcional catalisou o diálogo entre o passado e o presente naquele espaço e aprofundou, em reforço às pontuais entrevistas, a aproximação dos ocupantes-atores-personagens. “Cine Marrocos” explicita assim que documenta o processo de rodar um documentário a partir da ocupação, renunciando de saída a qualquer ilusão de objetividade. Touché.
Na filmagem das entrevistas de “Libelu”, Diógenes Muniz também buscou a reverberação de ecos do passado por meio de um local marcante para a conjuntura histórica que busca reavivar na memória de seus entrevistados. Trata-se aqui do prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), sede de assembleias essenciais na reorganização da militância universitária contra o regime militar na segunda metade da década de 1970.
“Libelu” reclama o devido crédito para o ressurgimento do movimento estudantil como parte fundamental da luta pela redemocratização. Faz isso destacando a originalidade da mais dionisíaca das novas organizações, a Liberdade e Luta (Libelu), de raiz trotskista, menos sisuda e mais pop do que a militância tradicional.
Muniz reservou um curto-circuito como desfecho do fluxo narrativo bem articulado entre depoimentos cirurgicamente editados e curioso material de arquivo, sobretudo televisivo. Um telão substitui a cadeira dos entrevistados na FAU, para nele ser projetado o único depoimento impossível de colher lá. Basta de “spoiler”. É neste capítulo final que “Libelu” mais diretamente remete a “No Intenso Agora” (2017).