Por Amir Labaki
Escrever sobre o crítico e historiador de cinema Paulo Emílio Sales Gomes (1916-1977) é sempre um chamado à humildade. O ponto de partida supera inevitavelmente o texto de chegada. Repito a experiência com esta coluna sobre “Cinema e Política”, a nova coletânea de seus escritos para a coleção Grandes Ideias da Penguin & Companhia das Letras (152 págs, R$ 34,90).
Apesar de ter o mesmo organizador, Carlos Augusto Calil, discípulo de Paulo Emílio na ECA-USP, seu sucessor na Cinemateca Brasileira e editor de sua produção literária, não se trata do esperado terceiro volume das obras completas, iniciadas com as publicações pela mesma editora de “O Cinema No Século” (2015) e “Uma Situação Colonial?” (2016). Mais sintético, com apenas vinte textos, sendo um a transcrição de entrevista à cientista política Maria Victoria Benevides, a nova antologia destila o essencial da ensaística do autor sobre as duas grandes paixões de sua trajetória, enunciadas no título na ordem inversa de sua predominância biográfica.
Em “Cinema e Política” pode faltar o primeiro, mas nunca o segundo. Na maior parte dos textos, na verdade, trata-se de ambos em conjunto. O volume bem poderia ainda apresentar como subtítulo “Uma Autobiografia Fragmentária”, pois a sucessão dos escritos revela distintas etapas da vida, da obra e das ações de Paulo Emílio.
Devotados ao cinema soviético, os quatro textos iniciais relembram como as Revoluções de 1917 dominaram o imaginário dos intelectuais progressistas da geração de Paulo Emílio, ainda que no caso dele, um socialista democrático até o fim, o fascínio surja sempre matizado pela perspectiva crítica frente ao totalitarismo stalinista. “A Rússia foi o país que mais me interessou e durante mais tempo”, confessa ele na frase de abertura de “Introdução Bastante Pessoal”, coluna originalmente publicada em 1961 no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo e estrategicamente escolhida para iniciar a coletânea.
“O Cineasta Maiakóvski” e “’Potemkin’ e ‘Outubro’” trazem algumas das mais cintilantes reflexões do muito que escreveu sobre o cinema soviético. O primeiro texto explorava território ainda então pouco explorado; o segundo compara com sacadas todas pessoais dos dois títulos centrais da filmografia eisensteniana.
“’(O Encouraçado) Potemkin’ é Baudelaire; ‘Outubro’, Mallarmé”, sustenta Paulo Emílio, com a erudição e a inteligência que ainda o distingue entre os crítico de cinema em qualquer país. “A tensão de ‘Potemkin’ está pronta, acabada, tornou-se, com o tempo, pré-fabricada. A de ‘Outubro’ está permanentemente em construção”.
“Ideologia de ‘Metropólis‘”, da mesma coluna em 1959, a um só tempo explicita a ambiguidade de fundo do clássico mudo de Fritz Lang (1890-1976) e a contextualiza frente ao segundo Leviatã totalitário, o nazismo, que influenciou decisivamente a trajetória do autor. “Há uma desproporção caricata entre seu rigoroso gênio plástico e a inconsequência de seu pensamento”, resume ele. Numa nota, uma grande sacada: “Os grandes documentários nazistas de Leni Riefenstahl são, estilisticamente, próximos de ‘A Morte de Siegfried’ e ‘Metrópolis’”.
Sua apaixonada militância na esquerda democrática antigetulista, na antecâmara e no ocaso do Estado Novo (1937-1945), pauta dois conjuntos iluminadores de textos e a entrevista citada. Entremeando os dois grupos, ei-lo decifrando os ecos no cinema de Jean Renoir (1894-1979) da breve experiência (1935-37) do governo progressista da Frente Popular na França, país onde se exilara em 1937 na esteira de sua prisão pela máquina repressiva de Getúlio Vargas (1882-1954) após a chamada Intentona Comunista de 1935.
A segunda e extensa temporada parisiense no pós-guerra marca seu afastamento da atividade política mais direta e seu mergulho na nova paixão cinematográfica. Paulo Emílio aos poucos afirma-se com um original intérprete do Brasil a partir da leitura de nosso cinema. O mais extenso ensaio da antologia, “Cinema: Trajetória No Subdesenvolvimento”, de 1973, com a certeira e dolorosa fórmula de que “nada nos é estrangeiro, pois tudo o é”, restando-nos “a incompetência criativa em copiar”, representa o ápice desta reflexão.
O rigoroso leitor dos limites da República brasileira até o ocaso do primeiro getulismo (“No Brasil nunca houve democracia”) escorregou na ligeireza com que descartou o duradouro impacto do golpe de 1964 (“nada fundamental estava em jogo”), mas apreendeu naquela triste conjuntura uma lição que até hoje, na catastrófica presidência Bolsonaro, insiste em nos desafiar: o de “nossa desimportância”, nossa, no caso, a do cinema brasileiro frente aos poderes de turno. Dois de seus monumentos estão aí para quem quiser ver: a paralisia dos mecanismos de produção via Ancine e a situação comatosa a quem está condenada, segundo a fórmula do próprio Calil, a obra institucional mais importante de Paulo Emílio, a Cinemateca Brasileira. “Cinema e Política” é, em todos os sentidos, um urgente manual de resistência.