Por Amir Labaki
Testemunhei pessoalmente o carisma de Sérgio Mendes ao ser apresentado a ele por um amigo há quinze anos no lobby de um hotel parisiense. Era uma manhã de verão e a cidade parecia ter se aquecido para melhor receber aquele fenômeno tropical da música pop do último meio século. Julgava que Sérgio tinha um rosto já maduro desde suas imagens de juventude, ainda nos tempos da Bossa Nova, e o súbito encontro revelou que sua face finalmente batia com a idade, iluminada por um sorriso aberto do gato de Alice segundo Walt Disney, mas era sua jovialidade que agora destoava da idade no passaporte.
Vê-lo imediatamente acionou a memória auditiva de sua popularíssima gravação com a banda Brasil ’66 de “Mas Que Nada”, de Jorge Ben, mas o pouco que conhecia de sua trajetória aprendera lendo “Chega de Saudade – A História e As Histórias da Bossa Nova”, de Ruy Castro. Lembro que pensei que a já então aquecida produção de documentários musicais no Brasil tinha nele um personagem incontornável.
O tempo passou e eis que seu retrato fílmico nos chega agora pela HBO pelas lentes de um tarimbado diretor americano, John Scheinfeld: “Sérgio Mendes no Tom da Alegria”. Scheinfeld é do ramo. Seu “Os EUA X John Lennon” (2006), que abriu a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no ano seguinte, radiografava pioneiramente a perseguição do FBI contra o pacifista ex-beatle, e é possível conferir na Netflix o belo filme que realizou sobre o saxofonista John Coltrane (1926-1967), “Chasing Trane” (2016).
Estando Sérgio sediado nos EUA desde meados dos anos 1960 e tendo desenvolvido a maior parte sua carreira impressionante dentro da indústria fonográfica americana, é compreensível que sua primeira grande biografia documental seja assinada por um realizador de lá. Imagino que um documentarista brasileiro provavelmente teria dedicado um tempo maior de filme a seus inícios como pianista no Rio do auge da Bossa Nova e procurado entrevistar alguns de seus contemporâneos de noite, como Carlinhos Lira e Roberto Menescal.
Tendo Nélson Motta como um dos produtores executivos brasileiros e naturalmente um dos entrevistados, “Sérgio Mendes no Tom da Alegria” não descuida totalmente de seus anos de formação. Scheinfeld viajou com Sérgio a sua Niterói natal, recordando a osteomielite que lhe limitou os movimentos na infância e a precoce demonstração de talento musical. É tocante ver o músico revisitando o Beco das Garrafas em Copacabana, onde no Bottle’s Bar e no Little Club debutou profissionalmente alternando-se com tantos outros, de Raul de Souza e Paulo Moura a Baden Powell e Wilson das Neves.
Sérgio Mendes já havia gravado um LP instrumental aqui antes de participar com seu sexteto da histórica noite da Bossa Nova no Carnegie Hall de Nova York, em novembro de 1962. Aquela primeira viagem aos EUA ainda lhe renderia uma parceria com o saxofonista Cannonball Adderley num dos primeiros álbuns americanos a se alimentar da Bossa Nova, mas a mudança de país não foi imediata. De volta ao Brasil, com o sexteto Bossa Rio gravou seu primeiro grande LP, “Você Ainda Não Ouviu Nada!” (1963), definido por Nelson Motta com “um encontro de jazz e Bossa Nova” resultando na “Bossa Pesada”.
O impulso decisivo para a partida veio com a detenção de Sérgio logo após o golpe militar de 1964. Um telegrama para um amigo sobre o nascimento de seu filho Rodrigo, em 6 de abril daquele ano, soou suspeito para as forças da repressão. Lia-se: “Rodrigo Mendes O Primeiro Realista Mágico de Niterói Avisa ao Tio Lee A Ordem do Dia É Fralda Larga e Leite Morno”. Com o apoio de um amigo diplomata, Sérgio partiu com a família para o exílio americano -e por lá ficou.
A explosão demorou um pouco e foi catalisada por dois encontros: a cantora Lani Hall, que se tornaria a voz principal de sua Brasil ’66, e o músico e produtor Herb Alpert, um dos fundadores da gravadora A & M Records. A regravação de “Mas Que Nada” era a faixa de abertura de “Herb Alpert Presents Sergio Mendes & Brasil ‘66”, que alcançou o sétimo posto na parada dos EUA. O resto é história.
Nada menos que 19 álbuns de Sérgio Mendes ficaram desde então entre os 200 mais vendidos da Billboard. Lani e Herb se casaram; Sérgio substituiu a vocalista pela revelação brasileira Gracinha Leporace, que se tornou em 1972 sua segunda esposa.
“A arte do encontro”, que Sérgio frisa para Scheinfeld, o tornaram um pioneiro do jazz fusion e da world music. Nem sempre deu certo, até ele reconhece, com uma longa freada de arrumação na virada do século, mas ei-lo no filme colaborando com astros contemporâneos como Carlinhos Brown e Liminha, por aqui, e Cannon, John Legend e will.i.am, por lá.
Em fevereiro último, Sérgio Mendes se tornou formalmente um octogenário. O documentário de Scheinfeld é uma bela celebração. Pena que o tom da alegria soe hoje tão deslocado do espírito da hora.