Por Amir Labaki
Toda uma estratégia de dissimulação, a começar do próprio título, marca “Os Quatro Paralamas”, documentário de Roberto Berliner e Paschoal Samora que concorreu no É Tudo Verdade 2020 e estreou no mês passado no Canal Curta!, estando agora disponível pela Netflix. São sabidamente três no palco os músicos da banda de rock brasileira Paralamas do Sucesso, que completa no próximo ano a marca rara de quatro décadas de atividades conjuntas.
Bi Ribeiro toca baixo, João Barone, bateria e Herbert Vianna é sua face mais imediatamente reconhecível, ao assumir a voz e a guitarra. O quarto integrante invisível, anunciado no título, é José Fortes, empresário da banda desde sempre.
“Os Quatro Paralamas” não se pretende um documentário musical exaustivo sobre a trajetória de imenso sucesso do grupo. Toda uma série parece necessária para dar conta de tão extenso painel. O filme se dedica a frisar momentos-chave, a partir da gravação de entrevistas e de conversas entre o quarteto, intermeadas por intervenções musicais, e de material de arquivo contendo de filmagens de bastidores e apresentações, muitas vezes em viagens, a trechos de videoclips célebres.
Um dos eixos estruturais destaca a atuação essencial, longe dos holofotes, de Fortes. Há de saída todo um lado profissional, da produção de gravações e shows à organização da logística de turnês. A grande popularidade os levou a cruzar os rincões do país e se estendeu mesmo além fronteiras, com ênfase no incomum sucesso no mercado argentino principalmente a partir dos anos 1990.
Não menos importante é o elo pessoal. Fortes o resume num depoimento emocionado: “Os nossos maiores amigos entre nós quatro somos nós quatro. Isso é raro. Nós vivemos juntos mais do que uma família”.
O documentário trata com a delicadeza exigida o momento mais trágico de suas vidas: o acidente com um ultraleve, em fevereiro de 2001, que vitimou a mulher de Herbert, Lucy, e quase o matou, deixando-o paraplégico. Num filme anterior, “Herbert de Perto”, lançado também no É Tudo Verdade em 2009, Berliner e o co-diretor Pedro Bronz também abordaram o traumático episódio, incontornável num documentário biográfico do roqueiro. A passagem do tempo possibilitou a “Os Quatro Paralamas” aprofundar a investigação do luto daquela tragédia, seja na fala dos membros do grupo quanto num registro dilacerante de Herbert lembrando Lucy com um clássico dos The Beach Boys.
A intimidade que propiciou a gravação desta cena inédita e antológica alicerça todo outro eixo do filme. Roberto Berliner documenta com sua câmera o cotidiano privado e a trajetória pública dos Paralamas desde o início da banda. Como ele próprio anuncia na narração de abertura do documentário, eles tocam e Berliner e equipe os filmam. De brincadeiras domésticas a clips históricos como o de “Alagados”, tudo passou por sua câmera.
Compreende-se assim que os quatro Paralamas são na verdade cinco. Aquela história é também sua. Havia nela mais que um invisível. Ou quase. Aqui e ali, de maneira pontual, por interações fora de quadro ou rápidas aparições diante da câmera, divisam-se a voz e o corpo de Berliner.
Esta dimensão de reflexividade em “Os Quatro Paralamas” é rara, mas não inédita em sua filmografia. Na versão em longa-metragem de “A Pessoa É Para o Que Nasce” (2004), sobre o extraordinário trio de irmãs cegas (Conceição, Maria e Regina) que cantam e tocam ganzá na Paraíba, o envolvimento afetivo de Maria em relação a Berliner foi sutilmente integrado à narrativa explicitando a densidade dos laços estabelecidos entre as protagonistas e o diretor.
Expondo a complexidade de suas relações com seus personagens, Berliner torna o jogo fílmico mais transparente, estilhaçando os mitos de neutralidade e impessoalidade do documentário. “Paralamas” dialoga com “Pessoa” tanto quanto com outro documentário de Berliner disponível na Netflix, “A Farra do Circo” (2013), também co-dirigido por Pedro Bronz.
O circo do título é o Circo Voador, espaço cultural surgido em 1982 no Arpoador no Rio, mas logo transferido para a Lapa, se tornando um dos palcos centrais da “movida” carioca no ocaso da ditadura e início do novo período democrático em 1985. Também “A Farra do Circo” se estrutura a partir de gravações feitas por Berliner.
Ambos os filmes a um só tempo celebram fenômenos culturais específicos e um outro: a obsessão voluntarista de um homem com a câmera. A arte de viver da fé -a de filmar.