Por Amir Labaki
Realizada no último domingo, a 93ª. cerimônia de premiação do Oscar foi um momento histórico na trajetória da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Duas chagas foram encaradas de frente. Uma, circunstancial: a pandemia da Covid-19, que obrigou ao adiamento e à radical reformulação da dinâmica do evento. Outra, histórica: a da falta de diversidade de gênero e de etnia no principal reconhecimento anual pela indústria fílmica dos EUA.
Me permita iniciar pela segunda. Pela primeira vez, duas mulheres foram indicadas ao prêmio de direção e uma delas consagrou-se como a grande vitoriosa da noite: a sino-americana Chloé Zhao, escolhida melhor diretora e também coprodutora do vencedor como melhor filme, “Nomadland”.
Nove intérpretes não-brancos marcaram novo recorde de representatividade entre os 20 finalistas nas categorias de atuação. Levaram ainda metade dos prêmios, com a coreana Yuh-Jung Youn recebendo o prêmio de melhor atriz coadjuvante por “Minari – Em Busca da Felicidade” e o afro-britânico Daniel Kaluuya vencendo o de ator coadjuvante por “Judas e o Messias Negro”.
A outra metade dos prêmios de interpretação distinguiu pela terceira vez Frances McDormand como melhor atriz, por “Nomadland”, e Anthony Hopkins, por “Meu Pai”, pela segunda. A Academia mostrou assim maturidade ao reconhecer compatíveis a busca de maior diversidade e o reconhecimento da excelência, seja nas indicações quanto na premiação.
O inequívoco triunfo de “Nomadland”, com o maior número de estatuetas da noite (3), todas nas categorias principais, não é menos extraordinário por ser esperado. Sim, erode-se um tabu ao premiar uma mulher como melhor diretora apenas pela segunda vez. Também o filme em si está longe do padrão tradicional de vitoriosos como melhor produção do ano.
“Nomadland” faz interagir com rara harmonia intérpretes profissionais com não-atores para reconstituir o drama dos deserdados do sonho americano a partir da crise econômica de 2008. Baseado no livro não-ficcional da jornalista Jessica Bruder, desenvolve-se como um “road movie” acompanhando pessoas em trânsito, convivendo em parques de trailers e em moradias improvisadas, atrás de empregos temporários para driblar a fome.
Misturando dispositivos da ficção e do documentário, Chloé Zhao fez um autêntico “As Vinhas da Ira” para os EUA do século 21. “Nomadland” é um filme híbrido, poroso, minimalista, de combustão lenta. Seu reconhecimento com o Oscar representa uma lufada de ar fresco no panteão da Academia.
Amplia-se sua vitória ao se impor sobre outra obra-prima da dimensão de “Meu Pai”, estreia na direção cinematográfica do dramaturgo francês Florian Zeller. Não lembro de representação dramática, em papel, no palco ou na tela, mais fiel ao incorporar em sua própria arquitetura o embaralhamento entre passado e presente, real e imaginário, devastadoramente típico à desordem mental e emocional provocada por quadros de demência senil. Nada mais justo do que premiar duas de suas vigas mestras: o roteiro adaptado pelo próprio Zeller, em parceria com o dramaturgo Christopher Hampton (Ligações Perigosas), e a mais matizada performance da carreira cinematográfica de Anthony Hopkins (O Silêncio dos Inocentes).
Mas o Oscar não seria o Oscar sem tropeços. Como venceu o É Tudo Verdade do ano passado, vou me abster de advogar aqui em favor do excepcional “Colectiv”, do romeno Alexander Nanau, indicado e derrotado em duas categorias, melhor documentário e melhor filme internacional. Na primeira, qualquer dos finalistas (Agente Duplo; Crip Camp; Time) era mais sólido e original do que o vencedor, o manipulativo e previsível “Professor Polvo”, de Pippa Ehrlich e James Reed.
Por sua vez, na segunda disputa, o esquemático “Druk – Mais Uma Rodada” me parece em tudo inferior ao anterior, e esnobado apesar de indicado, “A Caça” (2014), do dinamarquês Thomas Vinterberg, para não comparar com o soberbo concorrente “Quo Vadis, Aida?”, em que a cineasta bósnia Jasmila Zbanic reconstitui o massacre de muçulmanos em Srebrenica em 1995.
Uma nota sobre a cerimônia dirigida pelo cineasta Steven Soderbergh. Sua mera realização presencial, num dos países mais atingidos pela maior pandemia dos últimos cem anos, ficará como um símbolo venturoso da resiliência e do profissionalismo da indústria cinematográfica numa de suas horas mais funestas. A agilidade e proximidade das câmeras na improvisada sede com formato de café antigo na Union Square de Los Angeles, assim como a maior liberalidade quanto à duração dos agradecimentos, conferiu um ar a um só tempo mais humano e mais dinâmico a um evento engessado há décadas num formato desgastado de show televisivo.
O anticlímax provocado pela surpreendente antecipação do prêmio a melhor filme, seguido pela primeira vez pelas premiações a melhor ator e atriz, acabou por involuntariamente tornar-se um desfecho oportuno. No Oscar da pandemia, o último vencedor, um ator de 83 anos, estava por prudência ausente. Na cena final, um símbolo de nossa vulnerabilidade.