Por Amir Labaki
No É Tudo Verdade 2021 – 26º Festival Internacional de Documentários, encerrado no último domingo, foram afinal 70 títulos de 24 países em streaming, se incluirmos a sessão especial no derradeiro dia de “Collective”, o documentário do romeno Alexander Nanau que vencera o festival em 2020 e disputa neste domingo, dia 25, o Oscar em duas categorias: melhor documentário de longa-metragem e melhor filme internacional. Não será fácil, com respectivamente “Professor Polvo” (creia!) e “Druk – Mais Uma Rodada” ostentando certo favoritismo, mas tudo leva a crer num Oscar não modesto em surpresas.
Com Steven Soderbergh (Sexo, Mentiras e Videotape) reestruturando a primeira cerimônia pós-Covid de premiação pela Academia, anuncia-se uma noitada algo menos engessada do que a habitual, com discursos sem limites temporais tão rígidos e palcos sanitariamente seguros espalhados por meia dúzia de localizações. Casado a uma lista de indicados muito mais diversa e mais vinculada à produção independente do que ditava a tradição, se se emplacar um show televisivo mais dinâmico podemos estar num Oscar em plena reinvenção.
Reestruturação igualmente radical se impôs aos festivais de cinema desde o início da presente pandemia. O É Tudo Verdade não poderia ser exceção e encerra seu terceiro evento audiovisual on-line em doze meses, somando-se à edição recém-terminada o festival em duas etapas (março e setembro) do ano passado. Uma safra vibrante garantiu uma resposta de público e mídia similar ao recorde atingido em 2020, ainda à espera dos números consolidados, com nove títulos de mostras especiais (Caetano.doc e Ruy Guerra aos 90) disponíveis na Spcine Play até 8 de maio próximo.
É notável como as premiações dialogaram, de moto próprio, tanto com o espírito do tempo como com as celebrações especiais desta edição. No marco do centenário do cineasta francês Chris Marker (1921-2012), tema de um ciclo e de toda a 18ª Conferência Internacional do Documentário, organizada em parceria com o Itaú Cultural, o vencedor da disputa brasileira de longas-metragens, “Os Arrependidos” de Armando Antenore e Ricardo Calil, tem como elemento estrutural decisivo a ressignificação de antigos filmes publicitários de louvor à ditadura militar (1964-1985).
Novos depoimentos e entrevistas de época (início dos anos 1970) com ex-militantes da guerrilha urbana de oposição ao regime militar articulam-se com propaganda do “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”, desvendando no fenômeno dos “arrependimentos” dos jovens radicais uma estratégia de autojustificação das forças cruelmente repressivas dos governos autoritários. Antenore e Calil lançam luz num dos episódios menos discutidos do período militar, hoje nostalgicamente referido pelo desgoverno de turno, a um só tempo respeitando as individualidades de seus personagens e contextualizando-as no quadro histórico maior de uma era truculenta.
A comemoração dos 90 anos do cineasta, escritor e compositor Ruy Guerra (Os Cafajestes; Mueda: Memória e Massacre), um brasileiro por adoção nascido na Moçambique ainda colônia portuguesa, coincide com a premiação, como melhor longa da competição internacional, de um documentário no melhor estilo do Cinema Direto que radiografa os esgares autoritários na mais recente disputa presidencial noutro país africano, o Zimbábue. “Presidente”, da dinamarquesa Camilla Nielsson, disseca, no calor da hora, os golpes de mão com que governos antidemocráticos tentam burlar o resultado das urnas e sufocar a liberdade de imprensa, tudo em nome da permanência no poder.
Numa conjuntura de garroteamento público das instituições culturais brasileiras, a menção honrosa na disputa de longas nacionais a “Máquina do Desejo – 60 Anos do Teatro Oficina”, de Joaquim Castro e Lucas Weglinski, destaca a reconstituição, por meio de uma cuidadosa edição de acervos audiovisuais, do poder de reinvenção estética e estrutural de uma das mais fascinantes de nossas experiências teatrais, liderada por José Celso Martinez Correa. Já a menção a “Vicenta”, de Dario Doria, na competição internacional de longas, frisa a justiça histórica da recém-vitoriosa campanha pela legalização do aborto na Argentina, ao mesmo tempo que distingue um original dispositivo formal, baseado na filmagem de bonecos de argila em maquetes, para tornar visíveis dramas reais desfalcados de seus verdadeiros protagonistas. Se você pensou na recriação dos campos de terror no Camboja do Khmer Vermelho (1975-1979) pelo Rithy Panh de “A Imagem Que Falta” (2013), “touché”.
As relações mitológicas entre uma terra e sua gente ganha inspirada tradução audiovisual no melhor curta internacional, “A Montanha Lembra”, rodado pela argentina Delfina Carlota Vazquez em torno do vulcão Popocatépetl no México. Por fim, no melhor curta da disputa brasileiro, Rita e Vincent Carelli reafirmam, em “Yaõkwa: Imagem e Memória”, a urgência da defesa das culturas originais dos povos indígenas do país e o papel essencial do cinema para a conservação deste patrimônio imaterial. Que rime tão profundamente com o extraordinário mergulho no universo dos ianomâmis do filme de encerramento, “A Última Floresta” de Luiz Bolognesi, é um belo sinal de alerta.