Por Amir Labaki
Com uma pequena homenagem no fecho de minha introdução à abertura do corrente É Tudo Verdade 2021 procurei compensar um pouco o atraso em celebrar a obra do cineasta francês Bertrand Tavernier (1941-2021), falecido no fim do mês passado. Jamais tive o prazer de sequer cumprimentá-lo, tendo-o visto apenas apresentando sessões ou em entrevistas coletivas em festivais como Berlim e Cannes. A última oportunidade foi durante a apresentação de seu estupendo “Viagem Através do Cinema Francês” na seção paralela Cannes Classics de 2016, que à época comentei nesta coluna.
Tavernier formava com Martin Scorsese, na galáxia de Lumière, a dupla de grandes mestres dentre os cineastas-cinéfilos. É curioso quão distinta foi a formação deles. Filho de um intelectual de Lyon que participou da Resistência contra a ocupação nazista e o regime colaboracionista de Vichy (1940-1944), Bertrand tornou-se diretor de cinema depois de ter sido cineclubista, editor de cinezine e divulgador de filmes em Paris entre 1965 e 1973. Scorsese, por seu turno, faz parte da geração de cineastas formados em escolas de cinema, tendo cursado no fim dos anos 1960 o prestigioso curso da New York University.
Esta diferença de aproximação, germinada pelo amor comum pelos filmes desde a infância, se reflete nos extraordinários documentários sobre cinema a que ambos se dedicaram em momentos distintos de suas carreiras, já então estabelecidas como diretores de ficção. Scorsese estava ainda no meio de sua trajetória quando lançou, dentro das celebrações do centenário do cinema em 1995, sua série de quase quatro horas “Uma Viagem Pessoal Com Martin Scorsese Pelo Cinema Americano”, seguida quatro anos depois por seu complemento italiano, de mais de quatro horas, “Minha Viagem à Itália”, focado sobretudo no período neorrealista.
É apenas na despedida do cinema que Tavernier se engajou, em diálogo fílmico assumido com seu amigo americano, em seu díptico, um longa-metragem e uma série (Viagens Através do Cinema Francês, 2017), para revisitar a cinematografia de seu país. Se ambos os diretores assumem um discurso autobiográfico no início de seus primeiros documentários cinefílicos, Tavernier mantém-se radicalmente fiel a esta vereda íntima, enquanto Scorsese rapidamente altera seu registro para uma pegada mais histórico-analítica. Esta divergência de desenvolvimento coerentemente se repete em suas segundas obras ensaísticas sobre suas cinematecas íntimas.
Apesar da fuga de juventude para Paris visando escapar da influência paterna, Bertrand foi um radical fiel às suas raízes lionesas até o fim da vida. Berço do cinema com os irmãos Lumière, Lyon foi sempre o centro vital de Tavernier. Para lá adaptou o romance de Georges Simenon com que estreou na direção em 1973 (O Relojoeiro, disponível em dvd da Versátil) e por lá inicia as reminiscências autobiográficas de seu último longa, o citado “Viagem Através do Cinema Francês”.
Há décadas ele presidia ainda o Instituto Lumière, centro de difusão e estudos cinematográficos sediado no mesmo local da fábrica original retratada pelos irmãos pioneiros em um dos primeiros registros fílmicos. Sua esporádica atividade como documentarista também distinguiu a cidade com duas de suas principais obras não-ficcionais, em 1988 e 2001, ainda que sua mais marcante contribuição para o documentário tenha sido sua radiografia da luta pela independência da Argélia, de 1954 a 1962, com “A Guerra Sem Nome” (1992), realizado em parceria com Patrick Rotman.
Este enraizamento essencial na França profunda pinta apenas pela metade o retrato completo de Bertrand Tavernier. Como seu colega Jean-Pierre Melville (1917-1973), que em 1961 lhe deu a primeira oportunidade profissional em cinema como estagiário das filmagens de “León Morin, Padre”, uma experiência fracassada que afastou Bertrand por uma década dos sets e o encaminhou para o jornalismo cinematográfico, Tavernier foi fascinado pela cultura popular americana, dos romances baratos de crime e faroeste, dos filmes de Hollywood dos grandes mestres (John Ford, William A. Wellman) como de diretores algo esquecidos (André De Toth, Delmer Daves, Tay Garrett), e, claro, do jazz.
Não é à toa que a filmografia de Tavernier ostenta uma variedade de gêneros mais comum em seus colegas americanos do que franceses: policiais (L 627), filmes de época (A Filha de D’Artagnan), filmes de guerra (A Vida e Nada Mais), drama político (O Palácio Francês), musicais (Por Volta da Meia-Noite). Este último, centrado em torno do saxofonista Dexter Gordon (1923-1990), e seu longa logo anterior, “Um Sonho de Domingo” (1983), uma homenagem nada disfarçada à vida e obra do pintor impressionista Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), me parecem o ápice de sua extensa filmografia ficcional -e é belo que sejam, ambos, celebrações de artistas. Assim também era seu testamento fílmico, sob a forma de um díptico documental. Na lápide lionesa de Tavernier deveria se ler: o homem que amava o cinema.