Por Amir Labaki
Uma encíclica do Papa Pio 12 (1886-1958) foi um dos gatilhos da primeira fase do chamado “Cinema Marginal” brasileiro, realizado no final dos anos 1960 na Boca do Lixo em São Paulo. Para entender é preciso assistir a “O Bom Cinema”, documentário de Eugenio Puppo que estreou ontem (18) no 22º. Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires, o Bafici.
O título é uma referência irônica à defesa, na encíclica “Miranda Prorsus” (A maravilhosa invenção, 1957), da necessidade de a juventude ter acesso a filmes não apenas com valores morais católicos, mas também tecnicamente bem realizados. O filme de Puppo liga os pontos, mostrando como o documento papal inspirou o surgimento de cursos de cinema vinculados a organizações católicas no país, como o criado em 1962 em Belo Horizonte e o estabelecido em 1965 em São Paulo: a Escola Superior de Cinema da Faculdade de Economia São Luís, ligado ao colégio homônimo e fundado pelo padre jesuíta José Lopes.
Um dos alunos da primeira turma do curso paulista, o cineasta Carlos Reichenbach (1945-2012), é nosso principal guia em “O Bom Cinema” para explicar a ruptura entre o cinema careta defendido pelos católicos e a cinematografia transgressora realizada por ele e seus colegas, como João Callegaro e Carlos Ebert. “A escola foi tão importante para nós como a UNE para o Rio, para unir a turma”, sustenta Carlão.
Professor do curso, ninguém menos que Luiz Sérgio Person (1936-1976), diretor de clássicos como “São Paulo Sociedade Anônima” (1965), empurrou logo Reichenbach para a prática, produzindo seu curta documental de estreia como diretor, “Esta Rua Tão Augusta” (1967). Cumprido seu papel como “núcleo de encontro”, a Escola São Luís saía de cena, transferindo-se o grupo para o então nascente pólo cinematográfico da Boca do Lixo, no centro de São Paulo.
Surgia um movimento, inicialmente alcunhado de “Cinema Marginal”, que Reichenbach prefere denominar de “Cinema Pós-Novo”, como contraponto ao então hegemônico “Cinema Novo”, baseado no Rio de Janeiro. Era a reunião, continua ele, de “pessoas de formação diferente que foram fazer um cinema vinculado à vida”. A patota incluía além dele, Callegaro e Ebert, Rogério Sganzerla, Andrea Tonacci, Antônio Lima e João Silvério Trevisan, entre outros.
“O protagonista do filme desse ‘Cinema Pós-Novo’ não é mais o personagem subjugado, mas sim o marginal, o maldito, o personagem à deriva, o rebelde sem causa”, frisa Carlão. “Dois filmes foram fundamentais mesmo: ‘O Bandido da Luz Vermelha’ (de Sganzerla) e ‘As Libertinas’ (filme de episódios dirigidos por Callegaro, Lima e Reichenbach)”, ambos de 1968.
Sganzerla lembra como concebeu seu primeiro longa-metragem, visceralmente pop e paródico, numa longa viagem à Europa. Reichenbach conta como o tríptico nasceu numa conversa de bar na Boca, visando, escreveria mais tarde, “fazer um filme sacana no momento em que todos os colegas sonhavam com o filme político”.
Durou cerca de dois anos uma espécie de “primavera anárquica” de uma produção inventiva, improvisada, precária, metacinematográfica mas não “estetizante”, com o erotismo muitas vezes como atrativo de bilheteria – o “Cinema Cafajeste”, como definido por João Callegaro num “manifesto” da época. Alguns de seus principais títulos são “A Mulher de Todos” (1969), de Sganzerla, “Audácia! – A Fúria dos Desejos” (1969), de Reichenbach e “Amor”, de Lima, mas também “Blá-Blá-Blá” (1968), de Tonacci, e “Hitler Terceiro Mundo” (1968), de José Agrippino de Paula.
O ciclo se encerrou em 1970. Sganzerla mudara-se para o Rio e, em parceria com Júlio Bressane, inaugurava uma fase de intensa produção fundando a produtora Belair. A censura por sua vez interditava “Orgia ou O Homem Que Deu Cria”, de João Silvério Trevisan, e “República da Traição”, de Carlos Ebert. Era o fim do pacto entre o cinema de invenção e os produtores comerciais da Boca -e tinha início a era da pornochanchada.
Com “O Bom Cinema”, Puppo completa uma trilogia sobre o cinema independente paulista, iniciada em 2010 com seu documentário sobre Reichenbach e seguida em 2014 com um retrato de Ozualdo Candeias (1922-2007). O novo filme evita o didatismo e acerta ao apostar numa edição ágil e impressionista para impregnar-se da atmosfera a um só tempo lúdica e provocante da cinematografia que celebra. A revisão crítica do cinema brasileiro agora se faz finalmente também através do cinema.