Por Amir Labaki
Muitos filmes já foram feitos e serão feitos sobre Pelé, documentários como ficções, mas o documentário biográfico de Ben Nicholas e David Tryhorn a ele dedicado, lançado na semana passada pela Netflix, torna-se referência obrigatória, como raríssimas produções que o antecederam. “Pelé” tem o privilégio de contar com a colaboração do próprio retratado, aos 80 anos redondos, e de inúmeros de seus contemporâneos, fora e sobretudo dentro das quatro linhas.
O filme ainda acerta o foco, concentrando-se na dúzia de anos entre sua descoberta pelo mundo, na triunfal Copa do Mundo da Suécia em 1958, e seu último grande feito internacional, na magistral conquista do tricampeonato na Copa do Mundo do México de 1970. Mais: a narrativa de Nicholas e Tryhorn domina o tênue e difícil equilíbrio entre a dimensão biográfica privada, a espetacularidade dos eventos esportivos maiúsculos e a contextualização social e política da soma disso tudo. Pelé não merecia menos.
Em duas esferas fundamentais, “Pelé” não doura a pílula e encara as questões de frente e sem subterfúgios. A primeira, circunstancial, é o da tocante fragilidade física do octogenario Edson Arantes do Nascimento. Sua entrada em cena, para sentar-se na cadeira em que concede um dos depoimentos para o filme, o revela caminhando lentamente com a ajuda de um andador. Pouco depois, ao chegar para um delicioso encontro com um grupo de ex-companheiros dos tempos áureos do Santos, ei-lo movimentando-se numa cadeira de rodas, entre piadas, carinhos e provocações.
A segunda é a da complexa relação com a política do maior ídolo do Brasil contemporâneo. No Olimpo esportivo, tornou-se natural contrapor o corajoso engajamento de Muhammad Ali (1942-2016), que perdeu o título de campeão mundial dos pesos pesados e foi preso por recusar-se a alistar-se no Exército dos EUA durante a Guerra do Vietnã, com a confortável flexibilidade política de Pelé, que foi abraçar o ditador Emílio Garrastazu Médici três dias após fazer história com seu inédito milésimo gol, no período mais sombrio do regime militar, em novembro de 1969.
O documentário não deixa Ali pairar como uma sombra fantasmagórica sobre a saga de Pelé. O colunista esportivo Juca Kfouri é o primeiro a explicitar o contraste, destacando que “Ali foi diferente” e para ele bater palmas. Seguem-se breves imagens de arquivo da eloquência militante do lutador.
Logo depois, contudo, Juca matiza as conjunturas de ambos os posicionamentos -os democráticos EUA e o autoritário Brasil do fim dos anos 1960-, lembrando que o boxeador podia ter certeza de que não sofreria violências atrás das grades, mas o mesmo não seria garantido para o goleador nos cárceres de uma ditadura que torturava e eliminava seus opositores. Mais breve, perto do fim, eis uma rápida filmagem de Ali, em meados dos anos 1970, assistindo a uma partida de Pelé já no Cosmos de Nova York, como que numa visita entre majestades.
Nicholas e Tryhorn não se furtam de apresentar a Pelé perguntas incômodas e ele tampouco tergiversa ao respondê-las. Sobre o golpe de 1964, o craque diz que “o futebol continuou igual” e que “pelo menos, para mim, não teve diferença nenhuma”. Quanto à escalada repressiva, reconhece que “(de) muitas coisas a gente ficava sabendo”.
A exploração política parece ser encarada pragmaticamente por ele como um mal incontornável. Ele chega mesmo a reconhecer que foi pressionado pela ditadura para mudar de ideia quanto à sua aposentadoria da seleção brasileira após o fracasso de 1966 na Inglaterra e participar da Copa de 1970: “Sempre tinha uma mensagem que era para (eu) voltar”.
Quanto a outra questão espinhosa, o do papel de Pelé no fortalecimento da identidade afro-brasileira, o filme restringe-se a levantar as posições polares. Para o também ex-craque Paulo César Caju, Pelé “tinha o comportamento do negro submisso, do negro sim senhor”. Já a ex-prefeita do Rio Benedita da Silva saúda a trajetória do jogador como um modelo da possível afirmação pública e ascensão social para as crianças negras pobres.
“Pelé” é assim tanto uma radiografia da vida e carreira do maior craque do futebol mundial quanto um ensaio sociológico em filme sobre o Brasil que o gerou e assistiu maravilhado. O jornalista Roberto Muylart fala da pioneira inserção em 1958 do país “no cenário mundial através do futebol”. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso associa o surgimento do Pelé com o do “Brasil moderno”. Gilberto Gil o destaca como “símbolo de uma emancipação brasileira”.
Não se engane: o documentário exala inequívoca paixão pelo futebol. Dos depoimentos certeiros de craques de Pepe e Dorval a Rivellino e Jairzinho a imagens cristalinas mundo afora dos maiores momentos de Pelé em campo, “Pelé” é puro maravilhamento frente ao “beautiful game”. Basta um exemplo: o do iluminador congelamento do certeiro passe na área de Pelé para o gol de Jairzinho que valeu a vitória do Brasil sobre a Inglaterra na Copa de 1970. Não à toa Nicholas e Tryhorn se dedicaram a realizar a mais elaborada celebração fílmica do insuperável Pelé.