O cinema britânico despediu-se no mês passado de duas personalidades de proa de sua história contemporânea, felizmente nenhuma delas vitimadas pela cruel pandemia corrente. Em 3 de julho, perto de completar 103 anos, faleceu o ator Earl Cameron (1917-2020), um dos desbravadores das telas inglesas para intérpretes negros. No último dia do mês, o adeus foi a Alan Parker (1944-2020), cujo sumiço de cartaz no século 21, tendo se despedido em 2003 com o policial “A Vida de David Gale”, reduziu para as novas gerações o impacto de sua robusta filmografia desde meados da década de 1970.
Ambos contribuíram para revelar a tolice e o preconceito da célebre “boutade” de François Truffaut (1932-1984) de que cinema britânico era “uma contradição em termos”. Por aqui, a morte de Parker ganhou merecido destaque, enquanto as poucas notas sobre o falecimento de Cameron lembravam-no pela marginal participação na série James Bond, como o coadjuvante Pinder de “007 Contra a Chantagem Atômica” (1965), ainda da era Sean Connery e sob a batuta de Terence Young.
Nascido em Bermudas, descoberto pelo cinema já aos 32 anos, com oito anos de experiência teatral no currículo, Earl Cameron poderia ter sido um segundo Sidney Poitier se tivesse emigrado para os EUA ao invés do Reino Unido. Sua magra filmografia conta pouco mais de trinta títulos, com quase o dobro de participações em séries televisivas, a mais célebre das quais “Doutor Who”, mas em sua terceira temporada, nos idos de 1966. Talvez você lembre dele em “A Intérprete” (Sydney Pollack, 2005) como Zuwanie, o velho ditador africano cujas atrocidades o põe na mira de uma tradutora da ONU (Nicole Kidman) ao visitar a instituição em Nova York.
Ao injetar tridimensionalidade a um vilão potencialmente caricatural, um Cameron quase nonagenário provava o quanto o cinema perdera ao jamais abrir-se para uma carreira com o potencial demonstrado em seu ousado filme de estreia. “Pool of London” (1951) foi relançado aqui há pouco tempo em DVD, como filme extra da 12ª. caixa dedicada ao Filme Noir pela Versátil. Foi rebatizado como “Encontro em Londres”, quando originalmente estreara no Brasil como “Beco do Crime”.
Dirigido por Basil Dearden (1911-1971), um dos principais cineastas da Ealing, o mais importante estúdio britânico do pós-guerra, “Encontro de Londres” fez época ao colocar pioneiramente no centro do enredo um par de enamorados multirracial, formado pelo negro Cameron, como o marinheiro jamaicano Johnny, e pela atriz branca Susan Shaw (1929-1978), como a secretária inglesa Pat. Justifica-se a inclusão do filme numa coleção de policiais, dado o entrecho envolvendo um dos colegas de navio de Johnny e um roubo de diamantes a serem contrabandeados para Roterdã. Mas são o ousado par romântico, a abordagem explícita do preconceito racial pelo roteiro de Jack Whittingham & John Eldrige e, secundariamente, o frescor da filmagem de Dearden, em locações nas vizinhanças do porto de Londres, que o distinguem de policiais rotineiros da época.
“Encontro de Londres” adiantava algo do estilo realista e da ousadia social do chamado “Free Cinema” do começo dos anos 1960, liderado por diretores como Lindsay Anderson (O Pranto de Um Ídolo, 1963), Karel Reisz (Tudo Começou num Sábado, 1960) e Tony Richardson (Um Gosto de Mel, 1961), ao qual também a Versátil acaba de dedicar uma caixa, equivocadamente apresentada como “Nouvelle Vague Britânica”. É à geração imediatamente seguinte de cineastas que pertence Alan Parker.
Como seu contemporâneo Ridley Scott, Parker estabeleceu-se inicialmente na cena britânica como diretor de comerciais de TV. Da mesma geração, Ken Loach e Mike Leigh destacaram-se, por seu lado, primeiramente como diretores de dramas televisivos. Enquanto estes desenvolveram filmografias firmemente enraizadas na sociedade britânica, Parker e Scott romperam as amarras ao se associarem à produção hollywoodiana.
Em pouco menos de três décadas, Alan Parker dirigiu apenas 14 longas-metragens, tão marcantes e populares em sua maioria que surpreende ser uma filmografia em números tão modesta -e tão precocemente interrompida. A variedade de gêneros custou-lhe em prestígio, classificado por alguns como um cineasta sem identidade definida.
O mesmo durante décadas pesou, lembre-se, contra John Huston (1906-1987) -e hoje o diretor de “Relíquia Macabra” (1941), “O Tesouro de Sierra Madre” (1948) e “A Honra do Poderoso Prizzi” (1985) ri por último. Outro ponto comum é a fixação num certo tipo de personagem: os derrotados, para Huston, os determinados, em Parker.
Tentou-se também etiquetar Parker como diretor de musicais, para os quais tinha um talento sem paralelo em sua geração. É admirável, entretanto, a riqueza de sua paleta em filmes do mesmo gênero. “Fama” (1980), “Pink Floyd: The Wall” (1982), “The Commitments” (1991) e, milagrosamente, mesmo “Evita” (1996) são inesquecíveis, cada qual de sua forma.
Há ainda a sutileza psicológica de “A Chama Que Não Se Apaga” (1982), o expressionismo de “Asas da Liberdade” (1984), o gótico de “Coração Satânico” (1987), a contundência social de “Mississipi em Chamas” (1988). Parker, como Cameron, reafirma: não é a extensão de uma filmografia que garante vaga na história do cinema.