Por Amir Labaki
A maldição que Orson Welles (195-1985) gracejava tê-lo atingido durante sua malfadada jornada brasileira em 1942, para rodar o inacabado “It’s All True” (É Tudo Verdade), parece ainda rondar projetos relacionados aos poucos mais de cinco meses de sua estadia por aqui. A eclosão da emergência pandêmica mundial devido ao Covid-19 obrigou ao adiamento da viagem ao Rio de Janeiro, originalmente marcada para o mês passado, do documentarista americano Josh Grossberg para gravar “The Search for the Lost Print – The Making of Orson Welles’ ‘The Magnificent Ambersons’” (A Busca da Cópia Perdida – A Produção de “Soberba” de Orson Welles).
Se “It’s All True” jamais pode ser montado pelo próprio Welles, “Soberba” teve sua montagem final realizada fora de seu controle durante a viagem para filmar no Brasil o documentário de episódios como parte da política de boa vizinhança dos EUA dada a eclosão da Segunda Guerra (1939-1945). Ao lado do então montador Robert Wise (1914-2005), Welles dedicara à montagem e à sua própria narração de “Soberba” a maior parte do período imediatamente anterior à sua partida desde Miami em 4 de fevereiro de 1942. Chegara a uma versão de 131 minutos, que acreditava ainda afinaria daqui, possivelmente com a vinda de Wise com uma cópia de trabalho.
As restrições de guerra aos voos civis impediram a viagem do montador; veio apenas a cópia ainda em processo de montagem de “Soberba”. Passados 78 anos, é ela que caça Grossberg, descrente de que tenha sido destruída como à época ordenou a nova direção da produtora RKO.
A mudança de guarda no estúdio foi decisiva para a avalanche de dificuldades imposta ao trabalho de Welles no Brasil, seja nas filmagens de “It’s All True” quanto nos ajustes de montagem de “Soberba”. Durante sua viagem, o padrinho de Welles e seu Mercury Theater na RKO, George Schaefer, perdeu rapidamente poder e foi substituído à frente do estúdio por Charles W. Koerner, que elegeu como nêmesis o diretor de “Cidadão Kane” (1941). Credita-se isso ao insucesso inicial de bilheterias de “Kane”, apesar do reconhecimento pela crítica e pela Academia (nove indicações, incluindo de melhor filme, e um Oscar de roteiro original); à venenosa correspondência sobre os bastidores das filmagens de “It’s All True” do produtor Lynn Shores; e à total e imediata repulsa de Koerner à versão ainda não definitiva de “Soberba”, que viu com Schaefer numa repentina projeção privada em 16 de março de 1942.
Sem consultar Welles, duas sessões de testes de público foram realizadas em salas californianas, em Pomona e Pasadena, com reações francamente negativas mesmo a versões já progressivamente reduzidas. Schaefer escreveu ao cineasta: “Nunca em toda minha experiência na indústria tive punição ou sofrimento como o do teste em Pomona”. Mesmo enviando uma cópia ao Rio, e recebendo extensos memorandos de Welles com orientações sobre cortes e ajustes na montagem, a RKO assumiu o controle do filme, determinou refilmagens dirigidas por Wise e dois outros membros da equipe, reduziu-lhe a duração a 86 minutos e o lançou em 10 de julho, enquanto as filmagens de “It’s All True” ainda se desenvolviam em Fortaleza.
“Claro que eu já esperava que se fizesse um verdadeiro escarcéu em torno de um filme que, pelos padrões americanos da época, era muito mais pessimista que a tendência reinante”, diria décadas mais tarde Welles à biógrafa Barbara Leaming. Baseado num romance de Booth Tarkington (1869-1946) que vencera o Pulitzer em 1919, “Soberba” aborda a decadência, no início do século 20, de uma família aristocrática de Indianápolis pela ascensão da burguesia industrial simbolizada por um pioneiro da fabricação de automóveis.
Duas histórias de amor em gerações sucessivas, entre Ambersons e Morgans, ao mesmo tempo aproximam e repelem os protagonistas, infernizados pelo mimado jovem George Amberson. O próprio Welles o interpretou na versão radiofônica que realizou com o Mercury na versão de outubro de 1939; o insosso Tim Holt, ator secundário sobretudo de faroestes, o substituiu no filme. Creio ser esta uma das razões principais para nunca me convencer totalmente da grandeza de “Soberba”, que pode ser assistido em streaming pela Looke numa cópia que parece de um gasto VHS.
Sou minoritário nesta resistência. Welles sustentava “ser um filme muito melhor do que ‘Kane’ -se eles apenas o tivessem deixado como era”. O grande crítico francês André Bazin equiparava os dois filmes. Escrevendo em 1958, o brasileiro Paulo Emílio Salles Gomes secundava Welles, ainda que reconhecendo que “não se pode julgar artisticamente este segundo filme com a mesma segurança”. O cineasta e crítico Peter Bogdanovich considera sua mutilação pela RKO “a maior tragédia artística no cinema”.
Bogdanovich concedeu em janeiro uma entrevista a Grossberg para seu documentário. Na próxima semana, detalharei nossa conversa por e-mail sobre a origem brasileira do projeto. O mesmo Rio que testemunhou a destruição de “Soberba” pode ser o endereço de sua reconstrução.