Por Amir Labaki
É irônico e oportuníssimo que, quando restritos pela pandemia aos confins dos próprios lares, esteja sendo lançado em livro a tese de doutorado da montadora Thais Continentino Blank, “Cinema Doméstico Brasileiro (1920-1965)”, pela Appris Editora (251 págs, R$ 62, também disponível em e-book). Nenhuma surpresa que este desbravador estudo tenha sido catalisado por sua colaboração no longo e original processo de edição da série “Imagens do Estado Novo; 1937-1945” (2016), de Eduardo Escorel.
Para a quarta parte da série de filmes sobre o Brasil de Getúlio Vargas, em desenvolvimento já há nada menos que três décadas, Eduardo e Thais mergulharam em filmes domésticos conservados pela Cinemateca Brasileira. “Imagens do Estado Novo” utiliza trechos destes registros privados sobretudo como contraponto aos cinejornais brasileiros e internacionais, filmes institucionais e de propaganda e fotografias de época, visando refletir sobre os significados ocultos das imagens produzidas durante a era Vargas.
À luz dos escritos renovadores da historiadora francesa Sylvie Lindeperg (“Nuit et Brouillard: um film dans la histoire”), coorientadora da tese, “Cinema Doméstico Brasileiro” discute minuciosamente, em seu terceiro e último capítulo, intitulado No Tempo da Retomada”, a integração desses filmes de origem familiar na mais recente obra de Escorel, assim como a da utilização do mesmo recurso por dois outros documentários brasileiros contemporâneos, “Babás” (2010), de Consuelo Lins, e “Um Cidade” (2000), de Mônica Simões. Thais dedica os dois capítulos essenciais a um mergulho histórico e conceitual sobre a história do “cinema doméstico”, tendo por marcos históricos a invenção da câmera Pathé-Baby, e efetiva apropriação pelas famílias abastadas dos instrumentos para seu autorregistro, e a massiva disseminação da prática a partir do surgimento da câmera Super-8, em meados dos anos 1960.
O foco, tanto em “No Tempo da Tomada” quanto em “No Horizonte dos Arquivos”, vai do geral ao particular e do trabalho teórico ao detetivesco. No capítulo inicial, Thais examina o desenvolvimento do “cinema doméstico”, discutindo-o a partir dos estudos pioneiros de Patricia Zimmermann, nos EUA, e de Roger Odin, na França. Frisando a tardia incorporação desta produção na esfera tanto dos estudos quanto da preservação, eis como na segunda década do século 20 este gênero de filmes amadores consolidou-se aqui e mundialmente, sucedendo à prática até então vinculada ao chamado “cinema de cavação”, como se alcunhou a filmagem por encomenda a profissionais.
“Os filmes de família falam da vontade de permanência”, escreve Thais. “Mostram aos mesmos gestos, as mesmas pessoas, os mesmos cenários, para satisfazer um desejo compartilhado: organizar a narrativa familiar e testemunhar sua continuidade”. Sua pesquisa fixa-se sobre cinco coleções. “Mattos, Alves de Lima, Oliveira Castro, Simões e Sampaio são os nomes das famílias”.
O livro radiografa cada um destes acervos de maneira pioneira, cobrindo as lacunas das histórias dos contextos de suas produções a partir de entrevistas com herdeiros, exame de documentos e análise de cada imagem. Vai além. No segundo capítulo, recupera pacientemente como aconteceu “a patrimonialização” destes registros, isto é, o “percurso migratório dos filmes domésticos analisados”, das mãos de suas famílias originais a seus atuais arquivos, principalmente a Cinemateca Brasileira. Segundo o pioneiro levantamento feito pela pesquisadora Lila Foster, “os filmes domésticos representam aproximadamente 1,6% do acervo da instituição”, sendo pouco mais de mil títulos em película.
Thais resume a história das “cinematecas modernas, espaços dedicados a conservação e difusão do patrimônio fílmico”, da sueca de 1933 à mais mítica de todas, a francesa, surgida três anos mais tarde. Citando a tese de doutorado de Carlos Roberto de Souza sobre a “turbulenta trajetória” da Cinemateca Brasileira, lembra como ainda em 1929, portanto a pouco menos de um século, o jornalista Mário Behring já defendia aqui, nas páginas da revista Cinearte, a fundação de nosso museu do cinema.
A Cinemateca Brasileira, com este nome, foi estabelecida em 1956, a partir de projetos embrionários estimulados na década e meia anterior por figuras da dimensão de Paulo Emílio Salles Gomes e Francisco Luiz de Almeida Salles. Hoje a instituição atravessa talvez a maior das crises financeiras e institucionais de sua história, num longo processo de decadência iniciado, pasme-se, em 2013. Com funcionários especializados sem receber há meses, sob o risco de degradação irreversível do acervo pela ruptura de contratos de manutenção, a Cinemateca Brasileira foi irresponsavelmente abandonada pelo governo federal.
Este cinema doméstico? Esqueça. O Cinema Novo? Adeus. Pense num filme brasileiro. É hoje candidato a cinzas. Informe-se e mexa-se. Não haverá inocentes.